nº 544 - A Primavera de Helliconia 1



Autor: Brian Aldiss
Título original: Helliconia Spring
1ª Edição: 1982
Publicado na Colecção Argonauta em Maio de 2003
Capa: António Pedro
Tradução: Alexandra Rolão Tavares
Revisão: Dália Moniz

Súmula - foi apresentada no livro nº543 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":

Este é o primeiro volume de uma trilogia. O segundo irá chamar-se O Verão de Helliconia, e o terceiro, O Inverno de Helliconia
Uma obra preciosa de um autor consagrado, diversas vezes publicado na Colecção Argonauta, A Primavera de Helliconia começa assim:

Foi assim que Yuli, filho de Alehaw, chegou a um local chamado Oldorando, onde os seus descendentes prosperaram nos dias melhores que estavam para vir.
Yuli tinha sete anos, era virtualmente um rapaz crescido, quando se agachou sob uma cobertura de pelo com o seu pai e olhou para a imensidão de uma terra conhecida até nessa altura como sendo Campanniat. Tinha despertado de um sono breve com o cotovelo do pai nas suas costelas e a sua vez grossa a dizer:
- A tempestade está a diminuir. 
A tempestade tinha estado a soprar vinda do oeste havia três dias, trazendo consigo neve e partículas de gelo vindas das Barreiras. Encheu o mundo com uma energia uivante, transformando-o numa escuridão cinzento-esbranquiçada, como uma voz potente a que homem algum podia resistir. O rebordo onde as coberturas de pele se encontravam assentadas pouca protecção oferecia à parte pior da tempestade; o pai e o filho nada mais podiam fazer a não ser deitarem-se ali sob a pele, adormecidos, mastigando de vez em quando um pedaço de peixe fumado, enquanto o tempo fustigava a natureza sobre as suas cabeças. 
À medida que o vento enfraquecia, a neve chegava em jorros, retorcendo-se em flocos que pareciam penas através da paisagem monótona. Embora Freyr estivesse bem alto no céu - pois os caçadores encontravam-se dentro dos trópicos - parecia ali estar suspensa e gelada. As luzes ondulavam acima deles num xaile dourado após outro, cujas franjas pareciam tocar o solo, enquanto as dobras se erguiam cada vez mais até terem desaparecido no zénite cor de chumbo do céu. As luzes pouca iluminação davam, e nenhum calor. 
Tanto o pai como o filho se levantaram por instinto, esticando-se, e batendo com os pés, lançando os braços violentamente sobre os cilindros maciços que eram os seus corpos. Nenhum deles falou. Nada havia para dizer. A tempestade tinha terminado. Tinham ainda de esperar. Em breve, sabiam, os "yelks" ali chegariam. Não teriam de manter a vigilância durante muito mais tempo. 
Embora o solo estivesse enfraquecido, não possuía quaisquer características, estando coberto de gelo e neve. Por detrás dos homens havia um solo mais elevado, também ele coberto pelo mesmo tapete branco. Só para o norte é que o terreno tinha tomado um tom cinzento escuro e sorumbático, no local onde o céu caía como um braço magoado para se encostar. No entanto, o olhar dos homens continuava voltado para leste. Após um período em que se dedicaram a darem palmadas em si próprios, quando o ar em seu redor se encheu com os vapores nebulosos da sua respiração, os homens instalaram-se novamente sob as peles enquanto aguardavam.
Alehaw tinha-se instalado com um cotovelo coberto de peles na rocha, de forma que pôde aconchegar o polegar na parte oca da sua face esquerda, apoiando o peso do seu crânio no osso zigomático, enquanto tapava os olhos com quatro dedos enrolados. 
O seu filho esperou com menos paciência. Retorceu-se no interior das peles cosidas. Nem ele nem o seu pai tinham nascido para aquele tipo de caça. A caça aos ursos nas Barreiras era a sua forma de subsistência, e a dos seus pais antes deles. Mas o frio intenso, exalado pelas bocas gélidas e altas dos ciclones tinha-os levado, assim como a enferma Onesa, para o clima mais suave dos planaltos. Por isso, Yuli sentia-se inquieto e excitado. 
A sua mãe enferma e a sua irmã, assim como a família da sua mãe, encontravam-se a alguns quilómetros de distância, e os seus tios tinham-se aventurado esperançadamente na direcção do mar gelado, com o trenó e as suas lanças de marfim. Yuli perguntou a si próprio como teriam eles viajado naquela tempestade que durara dias, se estariam a festejar naquele momento, a cozinharem peixe ou pedaços de foca no caldeirão de bronze da sua mãe. Sonhava com o sabor da carne na sua boca, na sensação áspera desta mistura com a saliva à medida que era engolida, o sabor... O seu estômago vazio deu um ronco, ao pensar em tal.
- Ali, estás a ver?
O pai deu-lhe uma cotovelada nos bíceps.
Um frente alta de uma nuvem cor de ferro ergueu-se rapidamente no céu, obscurecendo Freyr, espalhando as sua sombra sob a paisagem. Tudo se transformou num borrão branco, sem qualquer definição. Abaixo da escarpa onde se encontravam deitados, estendia-se um enorme rio congelado, o Vark, segundo Yuli tinha ouvido chamarem-lhe. Estava de tal modo coberto de neve espessa que ninguém poderia dizer que se tratava de um rio, a não ser pela ponte que o atravessava. Cobertos até aos joelhos pela neve fria, ouviram um som fraco a zunir sob os seus calcanhares; Alehaw tinha-se detido, e tinha espetado a ponta aguçada da sua lança no gelo e tinha encostado a ponta romba ao ouvido, e estava a escutar o fluxo escuro de água algures sob os seus pés. A margem longínqua do Vark estava vagamente marcada por pequenas colinas, quebradas em algumas zonas por manchas negras, onde as árvores caídas jaziam semi-ocultas pela neve. Para além disso, apenas existia o planalto monótono, infindável, até se poder observar uma linha castanha sob os xailes ameaçadores do céu longínquo a leste. 
A pestanejar, Yuli observou aquela linha fixamente. Claro que o seu pai tinha razão. O seu pai sabia tudo. O seu coração inchou de orgulho ao pensar que ele era Yuli, filho de Alehaw. Os "yelks" estavam a chegar.
Alguns minutos depois, conseguiram vislumbrar os primeiros animais, que viajavam solidamente numa frente ampla, avançando com uma vaga em arco atrás deles, onde os seus cascos elegantes levantavam a neve. Prosseguiam com as cabeças baixas, e atrás deles vinham mais da sua espécie, e ainda mais, numa vaga sem fim. Yuli teve a sensação de que eles o tinham visto e ao seu pai e que estavam a avançar directamente sobre eles. Olhou ansioso para Alehaw, que fez sinal com um dedo para que tivesse cuidado.
- Espera. 
Yuli estremeceu no interior das peles dos ursos. A comida estava a aproximar-se, comida suficiente para alimentar cada pessoa de cada tribo sobre quem Freyr e Batalix jamais brilharam, ou para Wutra tinha sorrido.
À medida que os animais se aproximavam, de uma forma firme como num passo rápido de um homem, Yuli tentou aperceber-se do quão enorme era aquela manada. Naquele momento, já metade da paisagem se encontrava coberta pelos animais que se moviam, com a textura branca e castanho-clara das suas peles, à medida que surgiam cada vez mais animais sobre a linha do horizonte. Quem é que sabia o que se encontrava naquela direcção, que mistérios, que terrores? E no entanto, nada podia ser pior do que as Barreiras, com o seu frio seco, e aquela enorme boca vermelha que Yuli tinha vislumbrado uma vez através do colapso rasgado das nuvens, a jorrar lava pela encosta fumegante...
Agora era possível ver que a massa viva dos animais não consistia apenas de "yelks", embora fosse composta por eles em grande parte. No meio da manada havia emaranhados de animais maiores, que sobressaíam como grupos de pedregulhos num planalto em movimento. Aqueles animais, maiores eram parecidos com "yelks", com o mesmo crânio longo com chifres elegantemente curvados de forma protectora para cada um dos lados, a mesma crina desgrenhada sobre uma capa de pelo espesso malhado, e o mesmo alto nas costas, situado na direcção da garupa. Mas aqueles animais tinham mais de metade da altura dos "yelks" que os encabeçavam. Eram os gigantes "biyelks", animais formidáveis capazes de levar dois homens na garupa ao mesmo tempo - segundo tinha contado um dos tios de Yuli. 
E havia mais uma terceira espécie de animal associado á manada. Era o "gunnadus", e Yuli viu os seus pescoços erguidos em todos os sítios ao longo dos lados da manada. À medida que o grupo de "yelks" se movimentava para a frente de forma indiferente, os "gunnadus" corriam excitados para os flancos, com as suas cabeças pequenas a penderem na extremidade dos seus pescoços longos. A sua característica mais notável era um par de orelhas gigantes, que oscilavam de um lado para o outro, à escuta de alarmes inesperados. Aquele era o primeiro animal de duas pernas que Yuli jamais vira; sob o seu corpo de pelos compridos, havia duas imensas pernas parecidas com êmbolos que o impulsionavam. O "gunnadu" movimentava-se com duas vezes a velocidade do "yelk" e do "biyelk", cobrindo duas vezes mais terreno, e no entanto, cada um dos animais permanecia no seu lugar em relação à manada.
Um trovão pesado e contínuo marcava a aproximação da manada. Do local onde Yuli se encontrava junto ao seu pai, aquelas três espécies podiam ser distinguidas apenas porque ele sabia onde procurar. Todas elas se misturavam umas nas outras, sob aquela luz pesada e matizada. A nuvem negra da frente tinha avançado com mais rapidez do que a manada, e cobria agora completamente Batalix: aquela corajosa sentinela não voltaria a ser vista durante dias. Uma carpete amarrotada de animais rolava sobre a terra, sendo os seus movimentos individuais distintos como as correntes de um rio turbulento.
Havia uma névoa a pairar sobre os animais ,a envolvê-los ainda mais. Era composta por suor, calor e pequenos insectos voadores cortantes que apenas conseguiam procriar no calor da manada. 
A respirar com mais rapidez, Yuli espreitou novamente e - olhai! - as criaturas da frente estavam já a confrontar-se com as margens do Vark coberto de neve. Estavam próximo, estavam a aproximar-se cada vez mais - o mundo era um inescapável e prolífero animal. Voltou a cabeça para olhar para o seu pai. Embora tivesse visto o gesto do seu filho, Alehaw permaneceu rigidamente  a olhar em frente, com os dedos cerrados, os olhos semi-fechados por causa do frio sob as suas pesadas rugas. 
- Quieto - exigiu ele.
A maré de vida encapelou-se ao longo das margens do rio, transbordou, e caiu em cascata sob o gelo oculto. Algumas criaturas, adultos que se deslocavam pesadamente, faunos que pulavam, tropeçaram nos troncos ocultos das árvores, e as suas pernas elegantes agitaram-se furiosamente antes de eles serem esmagados pela pressão da marcha. 
Agora já era possível ver os animais individualmente. Traziam as cabeças baixas. Tinham os olhos fixos, orlados de branco. Restos espessos e verdes de saliva escorriam pelas suas bocas. O frio congelava o vapor das suas narinas voltadas para cima, manchando de gelo a pele dos seus crânios. A maior parte dos animais corria, em más condições, com o pelo coberto de lama, excrementos, e sangue, ou em faixas soltas, onde os chifres de um dos outros animais os tinham espetado.
Os "biyelks" em especial, que avançavam cercados pelos seus irmãos mais pequenos, com os ombros enormes cobertos de pelo cinzento, caminhavam com uma espécie de inquietação controlada, com os olhos a girar ao ouvirem os guinchos de perigo que os ameaçava, na direcção em que eles avançavam inevitavelmente.
A multidão de animais estava a atravessar o rio congelado, a fazer agitar a neve. O som que causavam surgiu claro aos dois observadores, não só o som dos seus cascos como o som áspero das suas respirações, e um coro contínuo de grunhidos, do seu resfolegar, e tosse, o tinir dos chifres contra chifres, o batimento claro das orelhas a serem agitadas para afastarem as moscas sempre persistentes. 
Três "biyelks" avançaram juntos sobre o rio gelado. Com um som agudo, o gelo quebrou-se. Fragmentos com quase um metro de espessura surgiram à vista assim que os pesados animais caíram para a frente. Os "yelks" entraram em pânico. Os que se encontravam sobre o gelo tentaram dispersar-se em todas as direcções. Muitos deles tropeçaram e foram trucidados pelos outros. O estalar do gelo começou a espalhar-se. A água, cinzenta e feroz, ergueu-se no ar - rápida e friamente, o rio estava ainda a fluir. Avançou, quebrou-se e ergueu-se em espuma, como se estivesse satisfeito por estar livre, e os animais afundaram-se com as bocas abertas, a bramirem.
Nada deteve os animais que continuavam a avançar. Eram uma força tão natural como o rio. Não paravam de avançar, esquecendo-se dos seus companheiros que tinham caído, esquecendo-se dos ferimentos demasiado profundos abertos no Vark, fazendo uma ponte de corpos caídos, até emergirem na margem seguinte. 

***

Meu caro Clive,  

No meu romance anterior, A Vida no Oeste, procurei descrever uma situação em que a depressão se espalhava pelo mundo, pintando uma tela ampla à medida que sentia que podia tactear com segurança. 
O meu sucesso parcial provocou-me ambição e descontentamento. Resolvi começar de novo. Toda a arte é uma metáfora, mas algumas formas de arte são mais metafóricas do que outras; talvez, pensei, conseguisse um melhor resultado com uma abordagem mais oblíqua. Desenvolvi então Helliconia: um local muito parecido com o nosso mundo, com apenas uma diferença - a duração do ano. Esta era para ser o palco do tipo de drama em qeu estamos enredados no nosso século.
Para poder obter alguma verosimilhança, consultei peritos, que me convenceram de que a minha pequena Helliconia era uma mera fantasia; precisava de algo mais sólido. 
A invenção tomou conta da alegoria. O que até foi bom. Com a sugestão dos factos científicos, a minha mente consciente encheu-se de toda uma série relacionada de novas imagens. Desenvolvi-as o melhor que pude. Quando me afastava da minha concepção original - no apastron das minhas primeiras invenções - descobri que estava a exprimir dualidades que eram tão relevantes para o nosso século como para Helliconia
Não podia ser de outra forma. Pois as gentes de Helliconia, os que não são pessoas, os animais, e os outros personagens, interessam-nos apenas se reflectirem as nossas preocupações. Ninguém quer um passaporte para uma nação de lesmas falantes. 
Dedico-te então este livro para teu divertimento, esperando que o aprecies mais do que em relação à A Vida no Oeste - e talvez ainda mais para te divertir.

Do teu carinhoso Pai
Begbroke, Oxford

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