nº 202 - O Mundo dos Homens Perfeitos



Autor: John Brunner
Título original: Entry to Elsewhen
1ª Edição: 1972
Publicado na Colecção Argonauta em 1974
Capa: Lima de Freitas
Tradução: Maria Emília Ferros Moura

Súmula - foi apresentada no livro nº201 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":  

Um admirável romance de ficção-científica, que vai marcar um ponto alto na Colecção Argonauta e de que damos em seguida um pequeno excerto:

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Antes de conseguir aceitar a realidade, Cecil Clifford olhou longamente o rosto estragado, em que ainda se discerniam restos da antiga beleza e o cabelo escuro espalhado na almofada. Os olhos encheram-se-lhe súbitamente de lágrimas, que reteve encolerizado. As lágrimas de nada valiam ante a presença da morte.
Finalmente, fez sinal à enfermeira para que cobrisse com o lençol o rosto que outrora amara, e ela obedeceu. Voltou-se de costas e começou a reunir os instrumentos cirúrgicos: reparou que a assistente o fitava com um olhar interrogativo, mas compreensivo. Sentiu a necessidade de explicar.
- Era... era a mulher de um dos meus melhores amigos - disse, num tom de voz áspero que provocou um aceno de compreensão na enfermeira que, no entanto, se absteve de qualquer expressão de pena, o que ele intimamente lhe agradeceu. Todo o desgosto que sentia era qualquer coisa de muito seu.
E o que matara Leila Kent, fora uma doença que estava a vitimar a população.
- Se me passar a certidão de óbito, ainda a assino antes de ir para casa - concluiu depois de uma pequena pausa.
Lançou um último olhar sobre o corpo imóvel, depois do que avançou em passos rápidos atè à cama do doente seguinte. Só nesta enfermaria, havia sessenta camas separadas por pequenos biombos desdobráveis e desde a primeira à última, todos os doentes eram vítimas da Peste.
- Só lhe falta o 47, doutor - ouviu a enfermeira dizer nas suas costas, e por um breve instante quase acreditou que ela lhe queria realmente dizer que apenas faltavam examinar mais quarenta e sete doentes. Talvez ainda fosse assim um dia...
Mas na realidade, ela estava a referir-se ao Número 47, Buehl, o astronauta, ainda fraco mas já convalescente, embora tivesse passado dez dias em tratamento, dado que o diagnóstico só ao fim desse período identificara a doença. O bacilo da Peste atravessava uma fase de camuflagem e o doente apenas apresentava sintomas de gripe. Até que... a explosão se deu!
Clifford interrogou-se amargamente se todas as drogas e antibióticos que dera a Buehl teriam produzido efeito. Assim acontecera aparentemente, pois a verdade é que aparentava melhoras. Tentara no entanto o mesmo tratamento com Leila Kent... e ela morrera.
Afastou decididamente o pensamento, mas a realidade dos factos mantinha-se: algumas vezes a Peste era mortal em cada um dos dez doentes, independentemente da terapêutica aplicada pelos médicos e outras vezes assistia-se a uma cura milagrosa em questão de dias, ocasionada por um tratamento algures malogrado.
Era simplesmente de loucura!
Mas o homem deitado na cama 47 tentava esboçar um sorriso e teve de lhe corresponder a fim de lhe inspirar confiança. 
- Bom! - exclamou. - Como se sente?
- Podia perfeitamente dar-me alta - disse por entre dentes o astronauta, fechando a revista técnica que estava a ler e correndo o fecho éclair do casaco, - Sinto-me capaz de voltar imediatamente aos voos espaciais.
- Essa decisão pertence-me e não a si - contrapôs Clifford com pretensa severidade e preparando-se para o auscultar com o broncoscópio. Buehl submeteu-se com um bocejo à lâmpada minúscula e ao tubo do aparelho.
Um rápido exame foi o suficiente para que Clifford se apercebesse de que o doente tinha realmente razão. Não necessitava de consultar o gráfico do dia anterior referente à garganta inflamada para compreender que tudo voltara repentinamente à normalidade. Os tecidos que há vinte e quatro horas se apresentavam inchados e de um vermelho vivo, estavam agora de um rosado tom saudável. Desligou o broncoscópio e confirmou as conclusões a que chegara com o estetoscópio. Os brônquios alterados de Buehl, que lhe tinham provocado uma respiração de doente a morrer de pneumonia, não acusavam praticamente qualquer sinal de anomalia.
Maldito bastardo! Porquê ele? Porque não...
Mais uma vez, Clifford varreu decididamente do espírito os pensamentos que o assaltavam. Ainda tinha de fazer mais alguns exames, antes de se poder pronunciar. Até esse momento, todos os que conseguiam escapar tinham ficado permanentemente imunes  - alguns voluntários corajosos tinham demonstrado esse facto - mas mesmo assim, com um micróbio daqueles, mutável, imprevisível...
- O braço, por favor - pediu, pegando no hemómetro. Buehl levantou a manga e deixou-se examinar. O mecanismo entrou em funcionamento e os números tornaram-se visíveis no mostrador: a contagem de sangue e a utilização de oxigénio eram normais. Buehl soltou uma risada ao ver-lhe a expressão.
- Está a tentar provar que não tenho razão, doutor?
- A sua recuperação é realmente inegável - retorquiu Clifford num tom subitamente ríspido. - Mas um de cada dez dos nossos doentes morre, seja qual for o tratamento aplicado e queremos descobrir o que fez com que você escapasse e eles não!
- Ouvi realmente falar nisso - disse Buehl com um aceno de súbita compreensão. - E há muita gente com a Peste, não há? Devem estar a lutar com uma tremenda falta de espaço, para se verem obrigados a juntar homens e mulheres assim na mesma enfermaria - continuou, indicando a ampla divisão e os biombos. - Quer provavelmente testar o meu sangue e verificar qualquer anticorpo que fez o milagre?
- Sim, é isso que faremos - concluíu Clifford um pouco envergonhado pela forma como falara e disfarçando a reacção mediante cuidados excessivos com a esterilização do aparelho que acabara de utilizar. - Temos portanto um bom motivo para não o mandar imediatamente de volta para Marte.
Servindo-se do EEG portátil, aplicou os terminais de sucção a algumas partes do crânio de Buehl, que tinham sido rapadas, embora de forma a permitir que o cabelo de tom castanho as disfarçasse.
- Mantenha os olhos fechados, por favor - pediu, examinando as indicações que apareceram no mostrador verde e iluminado do aparelho. - Abra, feche... Muito bem. Mantenha-os fechados e pense em qualquer coisa complicada.
- Estive a ler um artigo escrito por um indivíduo de Princeton. Propõe-se tornar as naves espaciais obsoletas. Utiliza uma matemática complicadíssima.
- Serve perfeitamente - respondeu Clifford com ar ausente e concentrando-se nos elementos fornecidos pla leitura do aparelho.
Meio minuto bastou para lhe comprovar que a capacidade intelectual de Buehl estava a funcionar em pleno.
- Pode descontrair-se - disse, retirando os terminais. - Nunca esperei que ficasse contente com a ideia de um cemitério de naves espaciais - acrescentou secamente.
- Não se trata de ficar ou não contente. O problema está em que considero o indivíduo capaz de construir um transportador espacial. 
- Mas pensei que já tinham provado que isso era impossível - exclamou Clifford erguendo os olhos, admirado.
- A velha teoria de estudarem a estrutura molecular de qualquer coisa e de se servirem de ondas transportadoras está definitivamente posta de parte. Mas este Professor Weissman está a abordar o assunto de um ângulo completamente diverso. Fala em conseguir a sobreposição de espaços diferentes. Diz que qualquer objecto introduzido num dos espaços apareceria também no outro. Trata-se de uma macroaplicação do princípio das probabilidades. Acha que era capaz de me arranjar um computador? Gostava de testar o raciocínio matemático que ele faz.
Clifford pestanejou. Sabia perfeitamente que para se ser astronauta, se era obrigado a ter conhecimentos excelentes de Matemática, mas de acordo com a sua ficha, Buehl não passava de um técnico mediano e a sua ideia de corrigir a teoria de um professor do Instituto de Altos Estudos parecia improvável.
- Acha-se realmente capaz de o fazer? - perguntou, sem se conseguir dominar.
- Refere-se às minhas condições físicas? Claro que sim... Não, não era isso o que queria dizer, pois não? - acrescentou, com uma tentativa de sorriso. - É o resultado de se ter a aparência de um homem saudável em vez da palidez do intelectual. Sim, doutor, sou capaz. Quando é preciso, domino a mecânica celeste. Já me aconteceu isso uma vez, quando a caminho de Marte o computador da nossa nave ficou avariado devido a um corpo astral estranho.
- Está bem. Verei o que posso fazer - respondeu Clifford com um sinal de assentimento que era igualmente de admiração. - Não sei quais as possibilidades de lhe pôr à disposição o nosso computador principal - os nossos funcionários dos serviços estatísticos protestam com a falta de material disponível -, mas acha qe uma calculadora portátil lhe serviria?
- Seria melhor que nada - respondeu Buehl.
- Não se importa de se encarregar da satisfação deste pedido? - Perguntou Clifford à enfermeira. - E já o pode transferir para um quarto de convalescentes. Está a reagir muito bem.
A cama dele pode ser cedida a um outro doente, continuou a pensar. O Buehl tem razão. Estamos sobrecarregados. A Peste está a devorar o país como um fogo na floresta...
Era o seu último doente daquele dia e nunca se sentira tão contente por ver o dia de trabalho terminado. Desde as seis da manhã que estava ao serviço e já passava nesse momento das quatro da tarde. Nas dez breves horas que tinham decorrido, assinara nove certidões de óbito - todas devido à Peste.
Saíu da enfermaria com ar fatigado e tirou a máscara e a bata que seriam inutilizadas. Depois passou cinco minutos no duche a esfregar-se com sabonete antigermes e retirou as roupas do radiador de ultravioletas, onde tinham ficado desde manhã. Seguira todos os princípios de desinfecção prescritos, que no entanto estavam a falhar cada vez mais desde que a Peste começara.
Quando entrou no escritório reservado aos cirurgiões, já aí encontrou o seu substituto da noite, o que se preparava para ir tomar duche. Deu-lhe uma breve panorâmica dos casos mais graves e falaram sobre assuntos variado até à chegada da enfermeira, que trazia os documentos.
Sem ligar ao problema tempo, leu-os um a um cuidadosamente, mais pela força do hábito do que por esperar encontrar alguns erros. Assinou e voltou a devolvê-los.
- Está lá fora um polícia à sua espera, doutor - informou a enfermeira num tom de voz hesitante quando lhes pegou. - Diz que quer falar consigo pessoalmente.
- Que diabo quererá?- explodiu Clifford.
- Não me disse. Mas insiste em que se trata de um assunto importante.
- Diabos o levem... Bom, acho que é melhor mandá-lo entrar. 
Recostou-se na cadeira e cerrou os olhos. Quando os voltou a abrir, viu recortado na ombreira da porta a figura de um homem alto e elegante com o uniforme de inspector e um olhar preocupado que Clifford reconheceu: vira aquela expressão no seu próprio rosto quase diariamente durante aquelas últimas semanas.
- Sei que está muito ocupado, doutor... começou a dizer o recém-chegado, mas Clifford não o deixou terminar a frase.
- Não tem importância. Sente-se. Em que lhe posso ser útil?
- Obrigado. Bom, chamo-me Thackeray, Inspector Thackeray e trabalho no Departamento dos Desaparecidos na Yard. Espero que me possa prestar algumas infomações relativamente ao que pretendo.
- Estou demasiadamente cansado para enigmas - suspirou Clifford.
- Claro. Desculpe. Bom, a verdade é que foi o médico que prestou assistência num dos primeiros casos de Peste, não é verdade? Não sei qual a designação oficial que dão a esta doença.
- Ainda ninguém teve tempo de a baptizar. Peste é um nome tão bom como outro qualquer .
- O caso a que me refiro - continuou Thackeray com um sinal de assentimento - é o de um homem não identificado que chegou a Londres de comboio vindo de Maidenhead. Moreno, bastante forte e entre cinquenta e sessenta anos. Sabe de quem se trata?
- Sim, recordo-me. Estava inconsciente quando o comboio chegou à última estação e não voltou a falar antes de morrer. Tivemos vários casos semelhantes. Julgo que o nosso pessoal da Secretaria lhes fornece todas as informações, ou não?
- Sim, de facto - retorquiu Thackeray um tanto mal humorado. - É esse o nosso problema. Quando diz que houve vários casos semelhantes, está a menosprezar um pouco os factos. Houve mais de cem pessoas na cidade de Londres até este momento que ou pediram boleia e morreram nos carros que as transportavam, ou não conseguiram sequer sair dos comboios e autocarros e estavam já em coma quando as tentaram transportar.
- Centenas? É realmente um número elevado. Mas o que posso fazer pessoalmente?

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