nº 164 - Loucura no Espaço




Autor: Murray Leinster
Título original: Doctor to the Stars
1ª Edição: 1964
Publicado na Colecção Argonauta em 1971
Capa: Lima de Freitas
Tradução: Eurico da Fonseca 

Súmula - foi apresentada no livro nº163 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":

"... Nenhum homem pode ser absolutamente eficiente se esperar louvores ou apreço por aquilo que ele faz. A incerteza dessa compensação, com a experiência demonstra, conduz à modificação das acções de cada um para aumentar a sua probabilidade... Se um homem se permitir a si próprio procurar a admiração, tenderá a tornar esse objectivo mais importante e a colocar num plano secundário o de fazer devidamente o seu  trabalho. Isso custa vidas humanas...
      
Manual do Serviço Médico Interstelar, pp. 17-18"

A pequena MedNave parecia absolutamente imóvel quando soou o aviso da uma hora. Depois, continuou a parecer imóvel. As gravações de ruídos de fundo continuaram a  fazer ouvir os sons pequenos e isolados que existem, sem serem notados, em todos os lugares onde os eres humanos habitam, mas que têm de ser fornecidos numa nave em ultravoo para que um homem não enlouqueça com a calma mortal. O aviso de uma hora era uma indicação de que as coisas iam mudar.
Calhoun pôs de parte o livro - o manual de MedServiço - e bocejou. Levantou-se do seu beliche para limpar a nave. Murgatroyd, o tormal, abriu os olhos e fitou-o meio adormecido, sem desenrolar a cauda peluda com que tapara o nariz.
- Gostaria de poder actuar com a tua apreciação realística dos factos, Murgatroyde! - disse Calhoun. - Este caso não tem qualquer importância e tu tráta-lo como tal, enquanto eu fico furioso quando penso na sua futilidade. Estamos numa missão simbólica, Murgatroyd - uma cortesia do MedServiço, que tem de responder às solicitações histéricas, tal como às sensatas. Estamos a perder o nosso tempo!
Murgatroyd piscou os olhos, sonolento. Calhoun sorriu-se com amargura. A MedNave era um veículo espacial de cinquenta toneladas - muito pequeno, portanto, naqueles dias -, com uma tripulação formada exclusivamente por Calhoun e Murgatroyd, o tormal. Era uma das pequenas naves que o MedServiço tentava enviar a cada planeta colonizado, pelo menos uma vez em quatro ou cinco anos. Tratava-se de conseguir que todos os progressos nos campos da saúde pública e da medicina individual fossem difundidos tão depressa quanto possível. Havia grandes MedEstações para enfrentar situações perigosas e emergências de nova forma. Mas todas as MedNaves tinham por obrigação enfrentar tudo quanto era possível, quanto mais não fosse porque a navegação no espaço consumia muito tempo.
Aquela viagem era um bom exemplo: uma mensagem de emergência chegara à sede do Sector, enviada pelo governo planetário de Phaedra II. Transportada por uma nave comercial em ultravoo, a muitas vezes a velocidade da luz, demorara três meses a chegar ao seu destino. E a emergência perante a qual solicitava auxílio, era absurda. Segundo dizia a mensagem, havia um estado de guerra entre Phaedra II e Canis III. Seria necessária uma acção militar contra Canis III. Seria necessária a assistência do MedServiço para os feridos e para os doentes. Portanto, era requisitada imediatamente.
A simples ideia da guerra, em si, era ridícula. Não podia haver guerra entre planetas. Os mundos comunicavam entre si por naves espaciais - era certo -, mas o propulsor interplanetário Lawlor não funcionava senão no espaço não-deformado e, de resto, o ultravoo era também impossível no campo gravitacional de um planeta. Portanto, uma nave que se dirigisse para outra estrela tinha de ser levada até uma distância de cinco diâmetros planetários, pelo menos, antes de poder começar a funcionar por si própria. Do mesmo modo, tinha de ser baixada de uma distância igual, até pousar, depois de o seu propulsor deixar de poder ser usado. As viagens no espaço só eram práticas porque existiam grelhas de descida - aquelas enormes estruturas de aço que usavam a energia da ionosfera dos planetas para gerar campos de força para a atracção e lançamento das naves espaciais. Por outras palavras: as grelhas eram indispensáveis para as descidas. E nenhum mundo deixaria que uma nave inimiga descesse sobre a sua superfície. Mas uma grelha de descida podia lançar bombas, ou mísseis, assim como naves, e portanto defender o seu planeta - em absoluto. Ora uma vez que não podiam haver ataques mas podia haver defesa, não podiam haver guerras.
- Tudo isto é um disparate - disse Calhoun. - Mandam-nos para aqui, temos três meses de viagem e a situação já tem seis meses de existência. Ou já está tudo comprometido, ou já se esqueceram de tudo há muito tempo e ninguém quer recordar-se de tal coisa. O que significa que perdemos o nosso tempo e os nossos talentos num trabalho que ninguém nos agradecerá porque não existe, e nunca poderia existir! O Universo está a viver maus dias, Murgatroyd! E nós é que somos as vítimas!
Murgatroyd tirou calmamente a cauda do nariz. Quanto Calhoun falava durante tanto tempo, isso significava que ele desejava um pouco de sociedade. Murgatroyd levantou-se, espreguiçou-se e disse:
- Chi! - Esperou. Se Calhoun queria de facto conversar, ele conversaria também. Adorava fingir que era um ser humano. Ele e os da sua espécie imitavam as acções humanas tal como os papagaios imitam a fala humana. Agitou-se mais um pouco, para demonstrar que estava pronto a falar.
- Chi-chi-chi - disse ele, no tom mais natural que lhe era possível.
- Pelos vistos, estamos de acordo - disse Calhoun. - Vamos à limpeza.
Começou a tratar daquelas coisas de que ninguém trata quando nada pode acontecer durante muito tempo: colocar de novo os livros no respectivo lugar; fazer o mesmo quanto a fichas e pastas; as bobinas de informação especiais que Calhoun precisava de estudar. Tudo em ordem, para facilitar e evitar as consequências da presença de possíveis visitantes.
O relógio de saída indicava que faltavam vinte e cinco minutos para acabar o ultravoo. Calhoun bocejou de novo. Na sua qualidade de organização de serviço interestelar, o MedServiço fazia por vezes coisas muito disparatadas. Os governos dirigidos por políticos, assim o exigiam. No entanto, os representantes do MedServiço tinham de estar bem informados quanto aos problemas que surgiam. Calhoun recebera ordens para ler, durante a sua viagem, informações relacionadas sobre a antiga loucura a que davam o nome de Arte da Guerra. Não gostara do que aprendera sobre os costumes dos seus antepassados. Pensou que tinha muita sorte por essas coisas já não acontecerem. Bocejou de novo.
Uns bons dez minutos antes da nave voltar ao estado normal, já se encontrava preso à cadeira de comando. Permitiu-se a si mesmo a luxúria de outro bocejo. E esperou.
A gravação de aviso zumbiu de novo. Uma voz disse: "quando soar a compaínha, faltarão cinco segundos para a saída". Ouviu-se um tiquetaque pesado, rítmico, persistente. Depois a campaínha, e uma voz: Cinco-quatro-três...
Não completou a contagem. Houve um estrondo tremendo e um relâmpago. E também o odor do ozono. A MedNave cabriolou como um cavalo. Saíu do ultravoo dois segundos antes do tempo previsto. Os foguetes automáticos, de emergência, rugiram, e a nave mergulhou, mudou de rumo com violência, voltou a mergulhar, e pareceu combater desesperadamente contra qualquer coisa que frustrava todas as manobras que ela tentava executar. Os cabelos de Calhoun puseram-se em pé quando ele compreendeu que o indicador do campo externo mostrava um terrível campo de força actuando sobre a sua nave. Parou os foguetes quando os seus impulsos brutais ameaçaram arrancá-lo do lugar. 

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