nº 383 - Planeta do Exílio



Autor: Ursula K. LeGuin
Título original: Planet of Exile
1ª Edição: 1966
Publicado na Colecção Argonauta em 1989
Capa: A. Pedro
Tradução: Raul de Sousa Machado

Súmula - Foi apresentada no livro nº382 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta"

Ursula K. LeGuin, uma das grandes escritoras de ficção-científica, com renome mundial, é a autora do próximo volume da Colecção Argonauta, intitulado Planeta do Exílio. Texto inigualável, quer como curioso exercício de estilo quer como exemplo da mais ousada imaginação, ela como que nos introduz no fantástico universo que o Inverno domina durante anos seguidos. 
Nos últimos dias da última fase da Lua de Outono, o vento começou a soprar vindo das cordilheiras setentrionais, varrendo as florestas moribundas de Askatevar, um vento que trazia consigo o cheiro a fumo e a neve. Ligeira e furtiva como um animal selvagem, agasalhada nas suas peles, a rapariga Rolery esgueirava-se entre o arvoredo, fazendo esvoaçar as folhas caídas, mantendo-se afastada das muralhas de pedra se erguiam no flanco da colina de Tevar, evitando também as leiras despidas da última colheita.
Seguia sozinha, e ninguém a chamou. Prosseguiu ao longo de uma trilha quase invisível, virada a poente, debaixo de inúmeras raízes, desviando-se de troncos caídos ou de enormes montículos de folhas mortas.
Quando a trilha se bifurcou, no sopé da montanha da fronteira, a rapariga seguiu a direito mas, antes de ter podido dar dez passos que fosse, rodou lesta sobre os calcanhares, ao ouvir um restolhar ritmado que se aproximava por detrás.
Um corredor surgiu a descer a trilha do norte, pés descalços a martelarem o solo recoberto de folhas, a longa fita que lhe amarrava o cabeço a esvoaçar nas suas costas. Vinha do norte, sempre na mesma passada calma, ágil e incansável, e nem sequer olhou para Rolery, escondida entre as árvores; pouco depois desaparecia da vista. Levava-o o vento, seguia para Tevar com as novidades - tempestade, desastre, Inverno, guerra... Desinteressada, Rolery virou costas e seguiu o seu caminho evasivo, ziguezagueando colina acima por entre os descomunais troncos mortos e gemebundos, até que por fim, ao chegar à crista, viu o céu clarear à sua frente, e por baixo do céu o mar azul.
O flanco poente do monte fora limpo de árvores. Abrigada debaixo de uma laje, a rapariga podia contemplar o remoto e radiante ocidente, o cinzento infindável da planície alagadiça e, um pouco abaixo dela e à direita, muralhada e com os seus telhados vermelhos, alcandorada nos penhascos da orla marítima, a povoação dos nascidos-distantes. 
Altas, pintadas de cores garridas, as casas em pedra amontoavam-se umas a seguir às outras, janelas viradas para janelas, tectos seguidos por tectos, descendo os rochedos até à beira do precipício. Do lado de fora das muralhas, para lá dos penhascos, do lado sul da povoação, o solo alisava-se em campos de cultivo e em pastagens, todas elas aos socalcos, cheias de represas e canais de irrigação, cuidadosamente alinhadas como o padrão geométrico de um tapete. Da muralha da cidade, à beira das falésias, passando por cima de dunas e diques, a direito, a caminho da praia e das brilhantes línguas de areia, estendendo-se por mais de quinhentos metros, sobressaía uma ponte assente em imensos arcos de pedra, ligando o povoado a uma estranha ilha negra isolada no meio do areal. Um penhasco agreste, negro e cheio de sombras negras, qual dedo a sair das areias límpidas e reverberantes, um rochedo obscuro e tenebroso, com o topo curvado e esguio, uma escultura demasiado fantástica para poder ter sido feita por ventos e marés. Seria uma casa? Uma estátua? Um forte, um monumento funerário? Que magia teria sido capaz de o esventrar para depois construir aquela ponte incrível, nos dias remotos em que os nascidos-distantes eram poderosos e amantes da guerra?
Rolery nunca prestara grande atenção às vagas lendas de feitiçaria que andavam normalmente associadas aso nascidos-distantes, mas agora, ao contemplar o dedo negro saído do areal, pôde reconhecer toda a sua surpresa - a primeira coisa verdadeiramente estranha que ela vira em toda a sua vida: construída num passado tão remoto que nada tinha a ver com o seu, construída por mãos que nada tinham a a ver com a carne e o sangue do seu povo, imaginada por mentes alienígenas. Era sinistro, mas atraía-a. Fascinada, a rapariga quedou-se a observar uma minúscula figura que caminhava ao longo da ponte, insignificante àquela altura e, por contraste com a imensidão da construção, um pequeno ponto negro como breu, avançando lentamente na direcção das torres negras nascidas das areias brilhantes. 
O vento aqui não era tão frio; o sol brilhava por entre as abertas das nuvens, arrancando reflexos dos tectos e ruas por baixo dela. A cidade atraía-a devido à sua estranheza; sem se deter para arranjar coragem ou decisão, indomável, Rolery desceu a saltitar o flanco da montanha e entrou pelo alto portão da cidade murada. 
Lá dentro manteve o mesmo passo leve e ágil, o andar descuidado que o orgulho a obrigava a adoptar, se bem que o coração lhe parecesse querer sair do peito quando olhava para as lajes cinzentas, lisas e perfeitamente alinhadas da rua alienígena. Olhava para a esquerda e para a direita, de esguelha, para as casas altas e esguias, com os seus telhados esquinudos, reparando, admirada, nas janelas de rocha transparente... afinal a lenda era verdadeira! À frente de algumas das casas havia um rectângulo de terra onde despontavam flores multicoloridas; vinhas virgens roxas e cor de laranja trepavam pelas paredes pintadas de azul ou verde, vividas no meio das tonalidades cinzentas da paisagem outonal. Junto ao portão nascente, a maior parte das casas estavam vazias, soturnas na sua solidão, sem aquelas curiosas janelas brilhantes e transparentes. Mais abaixo, contudo, as casas estavam habitadas, e quando lá chegou começou a cruzar-se nas ruas com alguns dos nascidos-distantes.

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