nº 339 - Tempo de Mudança


Autor: Robert Silverberg
Título original: A Time of Changes
1ª Edição: 1971
Publicado na Colecção Argonauta em 1985
Capa: A. Pedro
Tradução: Eurico da Fonseca 

Súmula - Foi apresentada no livro nº338 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":

Nem sempre as obras de ficção-científica têm títulos que falam das estrelas ou do futuro. A Time of Changes - na versão portuguesa, Tempo de Mudança - é a mais célebre das obras de um autor célebre: Robert Silverberg. Uma obra que mereceu o mais cobiçado dos galardões da FC: o Prémio Nébula.
Eis as suas primeiras linhas: 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Eu sou Kinnal Darival e eu quero contar-vos tudo sobre mim próprio.
Esta afirmação é tão estranha para mim que grita aos meus olhos. Eu olho para ela nesta página e reconheço a letra como minha - caracteres vermelhos, estreitos e verticais, sobre a folha de papel gosseiro, cinzento - e vejo o meu nome, e oiço no meu espírito o eco do impulso cerebral que gerou estas palavras. Eu sou Kinnal Darival e eu quero contar-vos tudo sobre mim próprio. Incrível.
Isto é algo a que o extraterrestre Schweiz chamaria uma autobiografia. O que significa uma descrição das coisas e dos feitos de uma pessoa, escrita por essa pessoa. Não é uma forma literária que sejamos capazes de compreender no nosso mundo - tenho de inventar o meu modo de narrativa porque não disponho de precedentes por onde me guiar. Mas é como deve ser. Neste planeta estou sozinho, agora. De certo modo, eu inventei uma nova forma de viver; por certo que posso inventar um novo tipo de literatura. Disseram-me sempre que sempre tive uma propensão para as palavras. 
Assim dei comigo numa barraca de ripas nas Baixas Queimadas, escrevendo obscenidades enquanto aguardo a morte, e apreciando os meus próprios dotes literários.
Eu sou Kinnal Darival.
Obsceno! Obsceno! Nesta folha de papel já usei o pronome "Eu" uma porção de vezes, ao mesmo tempo que deixei com toda a naturalidade palavras como "meu", "me", "mim", tantas vezes que não as quero contar. Uma torrente de desvergonhas. Eu Eu Eu Eu. Se eu expusesse a minha virilidade na Capela de Pedra de Manneran, no Dia do Baptismo, não faria nada tão sujo como estou a fazer aqui. Quase posso soltar uma gargalhada. Kinnal Darival praticando um vício solitário. Neste lugar solitário e miserável, ele dá massagens ao seu fedorento ego, uiva pronomes ofensivos ao vento quente, esperando que eles sejam levados pelas rajadas e vão sujar outros homens. Coloca frase após frase na síntese nua da loucura. Se ele pudesse, agarrar-te-ia pelo pulso e lançaria cascatas de sujidade no teu ouvido esquivo. E porquê? O orgulhoso Darival estará de facto louco? O seu espírito robusto ter-se-á desmoronado por completo sobre as mordedelas das serpentes do espírito? Nada ficou excepto o seu invólucro, sentado nesta medonha cabana, exacerbando-se numa obsessão com linguagem desonrosa, murmurando "eu" e "meu" e "mim", ameaçando estupidamente revelar o que há de mais íntimo na sua alma?
Não. É Dorival que está são, e são vocês todos que estão doentes, e, ainda que eu saiba quanto isto parece uma loucura, não recuarei. Não sou um lunático a murmurar sujidades para extrair um fraco prazer de um frio universo. Passei por um tempo de mudanças e fui curado da doença que afecta aqueles que habitam o meu mundo, e estou a escrever o que eu entendo que devo escrever na minha esperança de vos curar, ainda que eu saiba que estão a caminho das Baixas Queimadas para me matar por causa das minhas esperanças.
Assim seja.
Eu sou Kinnal Darival e eu quero contar-vos tudo sobre mim próprio. 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Estranho, dir-se-á. E é o termo apropriado. Porque em Tempo de Mudança, é descrita uma civilização futura em que a suprema vergonha é um homem falar de si próprio, referir-se a si próprio, dizer "eu", "me", "mim", ou revelar a outrem os seus sentimentos - autodesnudar-se. Uma atitude dessas poderá ser tomada como o cúmulo da humildade, ou do colectivismo. Mas não é. É precisamente o contrário. A sociedade futura, descrita por Robert Silverberg, é brutal, hipócrita, desapiedada. O culto das convenções esconde a desumanidade.

Introdução

Segundo me disseram, alguém escreveu uma vez uma novela em que nenhuma palavra continha a letra "e". Quando ouvi isso pela primeira vez, a ideia fez-me arrepios, porque escrever novelas já é um trabalho bastante difícil usando a livre extensão do vocabulário de cada um, e arranjar uma dificuldade como essa é suficiente para garantir uma série de soluços mortais, pelo menos. Rezei para que nunca me surgisse o desejo de fazer tais habilidades.
No entanto, dez anos depois, dei comigo lançado numa novela em que era proibido a qualquer personagem referir-se a si na primeira pessoa.
Estava a trabalhar nela havia cerca de uma semana, lutando contra o estranho constrangimento de evitar o pronome "eu", quando me recordei dessa novela sem o "e". Comecei a suar e perguntei a mim próprio se conseguiria chegar até ao fim do meu livro com a minha sanidade mental razoavelmente intacta; depois enchi os pulmões de ar e disse a mim próprio que estava a escrever um livro daquele modo não como uma habilidade nem como uma penitência, e voltei ao trabalho. A seu tempo acabei a novela, consegui publicá-la, e ela ganhou o Prémio Nébula para o melhor livro de ficção-científica de 1971, e vivi feliz depois disso, nunca pedindo a mim próprio para me lançar de novo num tal exercício.
O objectivo de evitar o uso do "eu" em Tempo de Mudança, não é, evidentemente, o de mostrar a minha habilidade, mas o de representar, por uma aproximação gramatical numa linguagem equivalente, as práticas linguísticas de uma cultura extraterrestre tão reprimida, tão acorrentada por um rigoroso apagamento pessoal, que todas as referências à própria pessoa são proibidas e têm de ser feitas eufemisticamente. Não se trata de uma ideia particularmente original: há culturas no nosso mundo, principalmente entre os esquimós, onde é considerado impróprio o uso da primeira pessoa no singular, mas penso que é razoavelmente nova na ficção-científica. Naturalmente, também estava enganado nesse ponto. As ideias ideias absolutamente novas na ficção-científica são muito menos comuns do que em geral se suspeita. Refiro-me às ideias absolutamente novas, não às simples variantes de familiares; a última de que posso recordar-me é a do "vidro lento" e Bob Shaw, e isso aconteceu há doze anos. De qualquer modo, é possível descobrir qualquer coisa como figuras de vidro lento numa novela de Júlio Verne de 1883.
A minha situação central em Tempo de Mudança teve pelo menos um uso prévio bem conhecido - num livro que li em 1953 e depois esqueci. Foi o Anthem de Ayn Rand, uma novela curta publicada pela primeira vez em 1946 e dedicada ao tema usual de Rand: "O mundo está a perecer devido a uma orgia de auto-sacrifício." No mundo distoplano de Anthem, a sociedade colectiva triunfou, e o pronome da primeira pessoa do singular foi abolido, o narrador fala de si próprio como "nós", como toda a gente nessa sociedade, mas por fim descobre a Palavra impronunciável e lança uma revolução destinada a restaurar os direitos sagrados do ego individual. Não é precisamente o que fiz em Tempo de Mudança, onde o problema não é uma sociedade colectivista que tudo absorve, mas antes uma pseudo modéstia formalizada, ritualizada, obstinada, que esconde uma feroz afirmação machista. Mas o efeito narrativo é o mesmo. A personagem de Rand e a minha lutam para a libertação do "eu", movendo-se através de moitas gramaticais, a dela falando de si própria como "nós" e a minha falando dele próprio como "alguém", e há uma urbanidade igualmente rígida no estilo. No entanto o que me pareceu sobrenatural foi a semelhança entre as linhas iniciais de Rand e as minhas. Quando redescobri Anthem em 1972, quase vinte anos depois de a ter lido ou pensado nela, e alguns anos depois de ter escrito Tempo de Mudança, dei consta, com minha admiração, de que o seu parágrafo inicial era o seguinte: 

"É um pecado escrever isto. É um pecado pensar palavras que os outros não pensam e escrevê-las num papel para os outros as verem. Isto é vil e maldoso. É como se estivéssemos a falar sozinhos para nenhuns ouvidos além dos nossos. E sabemos bem que não há transgressão mais negra do que fazer ou pensar alguma coisa sozinho. Infringimos as leis. As leis dizem que nenhuns homens devem escrever a menos que o Conselho das Vocações lhes ordene isso. Que nos perdoem! (...)
Isto é escuro. A chama da vela está fixa no ar. Nada se move neste túnel excepto a nossa mão no papel. Estamos aqui sozinhos, debaixo da terra. É um mundo medonho, sozinho. As leis dizem que ninguém entre os homens deve estar sozinho, em qualquer momento, porque essa é a maior transgressão e a raiz de todo o mal. Mas infringimos muitas leis. E agora não há nada aqui salvo o nosso único corpo, e é estranho ver apenas duas pernas estendidas sobre a terra, e na parede na nossa frente a sombra da nossa única cabeça."

Agora, vejam a página de abertura de Tempo de Mudança. A semelhança é espantosa - o narrador de Rand sozinho num túnel, o meu numa cabana no deserto, ambos a começarem a sua história falando de transgressões contra uma sociedade rígida. Tinha esquecido até a existência do livro dele quando principiei o meu e a menos que queiram argumentar que o que quer que lemos fica permanentemente registado num nicho cerebral qualquer e pode flutuar até à consciência em qualquer momento subsequente, a semelhança apenas pode ser chamada uma coincidência, mas muito estranha. (O resto do meu livro tem poucos pontos de contacto com o de Rand - graças a Deus.)
Escrevi Tempo de Mudança no Verão de 1970, e segundo creio ele foi a minha resposta a tudo quanto aconteceu nos últimos anos da década de 60, esse tempo de mudança para muitos de nós. Eu tinha sido tão rígido e senhor de mim como qualquer outro no velho, pré-Beatle, pré-psicadélico, pré-revolucionário mundo dos anos de Eisenhower, e tinha sido abalado pelas transformações na década louca que se seguiu, transformações que alteraram a minha atitude perante a vida, a minha maneira de vestir, o meu trabalho, e praticamente tudo o mais. Em 1970 eu pairava emocional e espiritualmente em qualquer parte entre Nova Iorque e a Califórnia, entre a velha e a nova vida, e oscilava, incerto, sem ter ainda optado em absoluto pela Califórnia e Tempo de Mudança é o registo desse terramoto interior, alterado pelas metáforas da ficção-científica mas inteiramente reconhecível pelo que está por detrás delas. (Alguns dos meus amigos mais apegados às convenções não compreenderam o livro, pensando que era apenas um escrito promovendo um uso mais largo e mais louco das drogas psicadélicas. Não era essa a minha intenção, mas foi difícil convencê-los.)
A novela foi publicada numa série na Galaxy Science Fiction, a revista em que então surgia a maior parte dos meus trabalhos, e no começo de 1971 apareceu numa edição cartonada do Science Fiction Book Club, com a primeira edição brochada a vir a lume nesse Verão. Em Abril de 1972, os membros da Science Fiction Writers of America concederam-lhe um Nebula como a melhor novela do ano - e poucos dias depois comecei a minha nova existência na área de S. Francisco. Voei até à cerimónia da entrega do prémio em Los Angeles para receber o meu belo troféu de lucite. Era uma coisa deliciosamente apropriada, segundo pensei, receber um Nebula por Tempo de Mudança na mesma semana em que eu deixara a minha antiga vida confinada em Nova Iorque para respirar o ar mais fresco e mais estranho da Califórnia.

Robert Silverberg
Oakland, Califórnia
Maio de 1978

2 comentários:

  1. Caro João, gralha no titulo original (A Time of Changes).
    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  2. Muito obrigado, caro Miguel, por me ter informado relativamente às "gralhas" que encontrou. Tenho andado muito ocupado, mas nos próximos dias conto que fiquem corrigidas.
    Grato

    ResponderEliminar