nº 280 - A Teia do Tempo



Autor: Michael Kurland
Título original: The Unicorn Girl
1ª Edição: 1969
Publicado na Colecção Argonauta em 1980
Capa: A. Pedro
Tradução: Eurico da Fonseca 

Súmula - Foi apresentada no livro nº279 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":

O próximo volume da Colecção Argonauta será uma obra invulgar de um autor invulgar - A Teia do Tempo (The Unicorn Girl), de Michael Kurland.Quem é Michael Kurland? A sua biografia, incluída no original de A Teia do Tempo, é a seguinte: 

"Michael Kurland é um jovem magro e tenso com óculos de aros metálicos e a expressão perpétuamente assustada de um coelho que tivesse recebido um convite para almoçar num clube Lions. É doutorado em Ecdisiologia e o seu primeiro trabalho publicado foi a tese: Padrões Culturais dos Apanhadores Migrantes de Maçãs de Brooklyn com Referência à Prevalência, Utilidade, Adaptabilidade e Posição Social dos Ecdisiastas dentro do Meio do Grupo-Padrão. Foi publicado como um livro ilustrado para crianças, sob o título "Ela Despia-se por Cidra", e teve três edições. 
Trabalhou como pregador de fios, abridor de barris, lavador de janelas, curtidor de arenques, vazador de uísque e apanhador de pimentos e pickles. Esta base diversificada, deu-lhe uma riqueza de experiência que até agora se tem mostrado totalmente inútil para escrever ficção científica.
Vive agora e trabalha num barco-casa no rio Dhama, no Norte do Tibete, mas não tardará a voltar aos Estados Unidos porque sente dificuldade em concentrar-se durante as seis horas em que o barco fica submerso em cada dia. O seu projecto presente, é um dicionário, conforme as suas ideias invulgares sobre a ortografia inglesa".
Por tal "biografia" se poderá fazer uma ideia do livro, escrito com um humor muito invulgar - mas incluindo ideias muito curiosas (com o respectivo desenvolvimento matemático!) sobre a possibilidade de deslocações no tempo e entre vias temporais paralelas. Um livro excepcional, sem dúvida. Como se poderá depreender da transcrição seguinte:
Foi no ano depois das borboletas. As coisas tinham-se acalmado e tornado ao normal. A pílula da realidade, com as suas alucinações audiovisuais, era uma coisa do passado; o fornecimento esgotara-se, excepto uma ou outra que Chester parecia descobrir quando se sentia criativo. Mas a verdade é que, quando Chester se sentia criativo, não havia maneira de saber o que ele iria descobrir. 
O único enigma na minha vida, de momento, era o desaparecimento desde há duas semanas, de um nosso amigo íntimo e membro da nossa "coorte", Tom Waters. Mas Tom era um mágico por vezes profissional e dado a desaparecimentos. Em geral, aparecia de súbito ao fim de alguns dias a queixar-se amargamente da falta de civilização para onde quer que ia. A civilização para Tom, era medida somente pela relativa abundância da manteiga de amendoim, bolinhos e cola; essa era a extensão em qeu ele se permitia comer e beber.
Chester Pé-Descalço Anderson estava no palco a tocar harpsicórdio electrónico com o seu novo grupo, os Cinco Elven. Eu estava sentado no fundo do Útero Trémulo, tentando ignorar a música o bastante para compor um soneto a uma senhora de que me enamorara recentemente. Fosse como fosse, a música estava a abrir caminho através das minhas bem gastas sinapses, da parte orelhuda do meu cérebro até à parte da mãozinha sem parar em qualquer parte ao nível consciente. Quando vi que escrevera: "És tão adorável como meter um dedinho num buraquinho e andar à roda e puseste o meu coração em papas" - como terceiro verso. Desistir e pus de parte o livro de apontamentos.
Foi então que vi a garota.
Estava junto à porta, não a mais de três metros de distância, falando com "Phil-Mais-Que-Amigo", o gerente. Eu nunca a tinha visto. Tinha a certeza disso, mas o meu subconsciente disse-me que conhecia aquela pequena. Ela tinha olhos grandes, escuros, bem colocados no tipo de rosto oval que os mestres flamengos punham somente nos anjos mais belos. Os cabelos dela eram escuros, de cor indeterminada sob a luz mortiça do café, dobravam-se suavemente sobre o pescoço e os ombros e desciam até lhe rodear o fundo das costas. Estava vestida com uma túnica que tornava terrivelmente feminina a sua figura arrapazada. Ao fim de alguns minutos, soube de onde a conhecia. Na minha juventude, durante um extenso período de leitura de literatura romântica, eu salvara aquela garota de tudo, desde cavaleiros maldosos até dragões terríveis em muitos sonhos meio acordados. Aquela era "A Garota Que Falava aos Unicórnios"; o símbolo da pureza e graça que eu jurara servir quando fizera os meus votos de lealdade e ficara de vigília com a minha espada durante uma longa noite. Ivanhoe não estava acima de mim quando eu tinha doze anos. por Loki, aquela era a garota dos meus sonhos. 
Não pude conter-me. Levantei-me e dirigi-me para onde eles estavam. A conversa deles parou quando eu me aproximei, mas eu, nada abalado e inabalável, mergulhei a fundo. Fiz uma grande vénia à pequena, sabendo que dentro de poucos segundos me sentiria tão parvo quanto provavelmente parecia, mas vivia apenas para aquele momento. Ouvi-me a dizer:
- Linda donzela, que a posso servir?
Se ela se tivesse rido, eu teria voltado de um salto para a minha mesa e ficaria de mau humor durante uns dias. Se ela se tivesse rido, nada disto teria acontecido.
Ela sorriu-se. Com uma voz que parecia feita de ondinhas num regato de prata, disse-me:
- Muito bem, senhor. Desejaria que me ajudasse. Procuro o meu unicórnio. - E disse isso com um distinto sotaque "cokney".
Havia, de resto, várias possibilidades. Podia ser uma brincadeira. Podia ser uma resposta bem-humorada à minha saudação. Podia ter um profundo significado psicológico, dadas as velhas lendas de unicórnios. No entanto, sem saber como, eu sabia que ela falava a sério. A garota dos meus sonhos precisava de quem a ajudasse a encontrar o seu unicórnio.
- Onde foi que o perdeu? - perguntei.
O Phil-Mais-Que-Amigo lançou-me um olhar malévolo.
- Sabes do que é que ela está a falar?
- Godfrey Daniel! - expliquei eu, acenando com os braços e falando mais alto que a música para me fazer ouvir. - O que é que tenho de saber? A pequena precisa de ajuda. Uma donzela em apuros. Por certo que é o bastante.
- Calma - aconselhou-me Phil, dando-me uma patadinha no ombro, um gesto de que não gosto muito.
- Leva-a para a tua mesa e fala-lhe. Eu mandarei servir café com os cumprimentos da casa. Já tenho bastantes problemas. 
Aceitei o seu conselho e o seu café de borla. Levei a garota do unicórnio para a minha mesa e fi-la sentar-se na minha frente. E propus-lhe:
- Agora conte-me tudo.
Notei que a música parara. Uma figura barbuda e gorducha aproximava-se da minha mesa.
- Ah, Michael - disse a figura num murmúrio de palco que foi ouvido em todas as mesas interpostas.
- Este Bach e Rock é um trabalho duro. Credo. Preciso de repousar.
- Afundou-se numa cadeira até aos tornozelos, que pôs em cima da mesa.
- Boa noite - acrescentou ele, dirigindo-se à jovem. - É uma das do Michael, ou posso fazer-lhe cócegas nas costas?
- Chester - expliquei eu à garota. - Glerph. Anderson. É isso. 
- Glerph? - perguntou Chester, erguendo uma sobrancelha. Costumava praticar isso em frente ao espelho.
- E eu chamo-me... Michael. Mike Kurland. - Estava nervoso.
- Estás nervoso - observou-me Chester.
- Eu tanho a mania das costas - confessou ele à jovem -, mas vou esquecer isso agora, pois que Michael, o Urso Teodoro, parece enervar-se ao ouvir falar disso.
- Chamo-me Sílvia - informou a jovem, mostrando-se um pouco divertida.
- Ah, Sílvia. De Silviana.Criatura dos bosques. Um nome delicioso. Diga-me, Sílvia, que está você a fazer fora do seu bosque encantado?
- Perdi o meu unicórnio - respondeu-lhe ela. - E Michael vai ajudar-me a encontrá-lo. - Ela parecia muito positiva.
- Glerph? - perguntou Chester?
- Ouviste a senhora - notei-lhe.
- Sim? Ah, "Humph". Unicórnio.
- Chester falara-me muitas vezes da sua firme crença nos unicórnios; agora estava a ter uma oportunidade de a pôr à prova.
Sílvia olhou para mim e depois para Chester e por fim de novo para mim.
- Não os compreendo. Vocês portam-se de uma maneira muito estranha. Desde que saí do comboio que toda a gente está a portar-se de uma maneira muito estranha. Talvez seja apenas o facto de eu não conhecer esta parte do país.
- Sim - concordou Chester. - De resto, você é de Liverpul. - Sentia-se muito orgulhoso da sua habilidade para distinguir os sotaques.
- Não - respondeu Sílvia. - Boston. 
Chester voltou-se para o palco, corado. Eu tinha a certeza de que ele começava a pensar que aquilo era uma partida cuidadosamente preparada. Andava sempre a suspeitar-me dessas coisas. Por vezes, tinha razão. Pelo menos, nunca lhe pus nada no sumo de laranja, mas estava sempre a encontrar "Drogas Desconhecidas da Ciência Moderna" no meu.
Jake Holmes, o melhor cantor folclórico WASP do mundo, estava em afinação no palco. Fingi ter um extremo interesse na rotina da entrada de Jake, enquanto Chester voltava a vermelhidão para mim.
- Boston - disse ele. 
É na comunidade de Massachussets - explicou-lhe a jovem.
Jake terminou a afinação e entrou na cantiga. Algumas garotas de dez-e-tantos e algumas das suas mãezinhas começaram a remexer-se silenciosamente nos seus lugares, os seus olhos bem fitos no perfil limpo e arrapazado de Jake. Não direi que fossem olhares lascivos, mas é bom que se saiba que não sou perito nessas coisas. 

Introdução: 

Quem é Michael Kurland? A biografia (?) que acompanha a versão original de The Unicorn Girl (na tradução portuguesa A Teia do Tempo) diz que se trata de um "Doutor em Ecdisiologia" cujo primeiro trabalho publicado foi a sua tese: Padrões Culturais dos Apanhadores Migrantes de Maçãs de Brooklyn com Referência à Prevalência, Utilidade, Adaptabilidade e Posição Social dos Ecdisiastas dentro do Meio do Grupo-Padrão, publicado como um livro infantil ilustrado, sob o título "Ela Fazia o Despe-Despe por Cidra". Mais diz a biografia que Kurland foi pregador de fios, enchedor de barris, lavador de vidros, conserveiro de arenques, entornador de uísque e comedor de pickles. Vive agora e trabalha numa casa flutuante no rio Dhama, no Norte do Tibete, mas não tardará a voltar aos Estados Unidos porque tem dificuldade em concentrar-se durante as seis horas por dia em que a casa está submersa.(De notar sensíveis diferenças nas palavras face à parte do texto transcrito na súmula e que se repete nesta introdução).
Tudo isto indica que A Teia do Tempo é uma obra invulgar no domínio da ficção-científica, pelo seu humor muito especial. E é verdade. Mas muito embora A Teia do Tempo pareça apenas um exercício de boa disposição e fina crítica, não é só isso. No fim, e como o leitor verá, trata-se de um dos trabalhos mais sérios que têm sido feitos sobre a possibilidade da existência de trilhos temporais alternativos. Nem a respectiva discussão matemática falta.

5 comentários:

  1. Bom dia,

    Começo por lhe dar os parabéns pelo excelente trabalho.

    Aproveito para o alertar de um pequeno lapso nesta entrada e que se reflecte na lista de autores. O nome do autor é Michael Kurland e não Clifford D. Simak.

    Cumprimentos,

    Álvaro

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  2. Caro Álvaro de Sousa Holstein,

    Bom dia, e muito obrigado pela correcção. É sempre com muito agrado que leio os comentários que tem a atenção de aqui colocar.

    Fiz as "etiquetas" todas praticamente numa noite, e embora já tenha corrigido bastantes erros mais óbvios, este foi um dos que me escapou. Já está corrigido, e agradeço-lhe mais uma vez.

    Faltam agora menos de 30 obras para terminar o projecto de escrita das súmulas, visto que os últimos dez números infelizmente já não as possuem.

    A seguir vou-me dedicar à página das biografias dos autores (com fotos sempre que possível), e procurar corrigir também mais alguns lapsos semelhantes a este que teve a atenção de mencionar.

    Uma boa semana, é sempre bem-vindo.

    Os meus cumprimentos e um abraço.

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  3. Caro João vagos, a gralha do nome do autor deste livro é persistente e mantem-se! (não vou dar os parabens pelo trabalho feito pois já o fiz por diversas vezes :-)
    Miguel

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  4. Obrigado caro Miguel, pelos comentários relativos a vários lapsos que encontrou. Irei proceder com o tempo à sua correcção. Até lá, sugiro que se encontrar mais, por favor envie as suas mensagens para o meu endereço de email, que consta do meu perfil.
    Grato!

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  5. Ora vivas a todos os Argonautófilos! Aproveito para informar que tenho este exemplar em estado impecável à venda. Podem visualizá-lo aqui (https://www.facebook.com/media/set/?vanity=solivrosbonz&set=a.120967990191892): Agradeço imenso pela amabilidade do Sr. João em me deixar publicitar e muitos parabéns pelo excelente blogue! Bem Haja a todos.

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