nº 282 - Terra Imperial 2


Autor: Arthur C. Clarke
Título original: Imperial Earth
1ª Edição: 1975
Publicado na Colecção Argonauta em 1980
Capa: A. Pedro
Tradução: Eurico da Fonseca 

Súmula - Foi apresentada no livro nº281 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":

O primeiro volume de Terra Imperial, a última obra de Arthur C. Clarke, é uma descrição circunstanciada do que poderá ser a vida no sistema solar dentro de trezentos anos. Uma descrição que se pode considerar didáctica e quase demasiado calma, sem nenhuma das fantasias características das obras correntes de antecipação.
Terra Imperial é uma obra de antecipação autêntica - baseada num conhecimento científico e tecnológico avançado e sem qualquer especulação. Tudo quanto a obra de Clarke contém, é fruto de um estudo profundo e multidisciplinar, em que colaboraram muitos dos mais famosos e competentes especialistas. Sob esse aspecto, só as obras de Júlio Verne podem ser comparadas com Terra Imperial
Mas a calma que caracterizou o primeiro volume era a que precede a tempestade. Este segundo volume é, todo ele, feito de acção. O que é que faz a empresa "Enigma Associates"? Quais são os segredos da ilha do Dr. Mohammed? Que significa a palavra "Argus"? Qual é o segredo de Karl Helmer?
Terra Imperial é a melhor obra de Clarke. Dizendo isso, tudo estará dito.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Havia numerosas vivendas, cafés e lojas ao longo da margem do rio, assim como dúzias de pequenas docas contendo barcos de recreio. Ainda que os transportes marítimos estivessem virtualmente extintos havia mais de dois séculos, a água ainda era uma irresistível fascinação para uma grande parte da espécie humana. Naquele mesmo momento, um barco de rodas com cores garridas, carregado de turistas, contornava a costa de Nova Jersia; Duncan perguntou a si próprio se era realmente antigo ou uma reconstituição moderna.
Os Hyats conduziram Duncan pra um semicilindro enorme e translúcido que se situava mais de três metros abaixo da linha de costa. Parecia ser uma construção improvisada, temporária, muito pouco concordante - em escala e aparência - com o cuidadoso bom gosto de tudo quanto o rodeava.
Já acompanhados por outros que faziam obviamente parte do grupo Enigma, entraram num edifício auxiliar, tão parecido com uma comporta de ar que era como se fossem entrar para o espaço. Na verdade "era" uma espécie de comporta de ar, contendo filas de vestes protectoras: capas de oleado, botas de borracha e... os capacetes que tanto tinham excitado a imaginação de Bill van Hyatt. Num silêncio feito de curiosidade e expectativa, com apenas alguns sorrisos fugidios perante a aparência transformada de cada um, passaram através da escotilha interna.
Duncan esperara ver um navio. Quanto a isso, pelo menos, não se sentiu surpreendido. Mas ficou absolutamente estupefacto perante o tamanho dele; quase enchia a enorme construção que o rodeava. Sabia que, perto do fim, os petroleiros se tinham tornado gigantescos - mas não tinha ideia alguma de que os navios de passageiros se tivessem tornado tão grandes. Era evidente, pelas muitas vigias e cobertas, que aquele navio fora construido para transportar pessoas e não carga a granel.
A plataforma de observação sobre a qual se encontravam estava ao nível do convés principal, imediatamente avante da ponte. À sua direita, Duncan podia ver um mastro enorme mas truncado e uma confusão de guindastes, guinchos, ventiladores e escotilhas, até à proa. Estendendo-se pela esquerda, até à popa escondida do navio, havia uma muralha de aço aparentemente infinita, pontuada por centenas de vigias. Dominando tudo, muito no alto, viam-se três chaminés enormes, quase tocando o tecto curvo da cobertura. Pelo seu espaçamento era óbvio que faltava uma.
Havia muitos outros sinais de danos. Havia janelas quebradas, partes dos pavimentos arrancadas e ao olhar para a quilha Duncan pôde ver um enorme remendo de metal, pelo menos com cem metros de comprimento, correndo imediatamente abaixo da linha de água.
Só então todas as peças do quebra-cabeças entraram nos seus lugares. Nesse dia ele fora um garoto num mundo distante, mas ainda se recordava de quando, depois da sua viagem inaugural de trezentos e cinquenta anos, o Titanic chegara finalmente a Nova Iorque.

"Nunca mais construíram um como ele; marcou o fim de uma era - um tempo de riqueza e elegância que foi varrido, apenas dois anos depois, pela primeira guerra mundial. Sim, construíram-nos mais rápidos e maiores, no meio do século antes de os transportes aéreos terem fechado para sempre esse capítulo. Mas nenhum navio voltou a igualar o luxo que agora vêm à vossa volta. Muitos corações foram quebrados, quando ele se perdeu."

Duncan podia crer naquilo. Ainda se supunha num sonho. O magnífico Grande Salão, com os seus vastos espelhos, as colunas douradas, as alcativas onde os pés se enterravam até aos tornozelos, era opulento para além de tudo quanto ele sequer imaginara, e o sofá em que ele se estava a afundar quase o fazia esquecer a gravidade da Terra. No entanto o mais incrível em tudo aquilo era o facto de tudo quanto ele via e tocava ter estado durante trezentos e cinquenta anos no fundo do Atlântico.
Não se dera conta de que o mar alto era quase tão intemporal como o espaço. O apresentador explicara:

"Todos os danos foram feitos na primeira manhã. Quando ele se afundou, duas horas e meia antes de o esporão de gelo ter rasgado o casco a estibordo, afundou-se de proa, quase na vertical. Tudo quanto estava solto tombou para a frente até ser detido pelas anteparas, ou passou através delas depois de se esmagar. Por uma sorte miraculosa - e isso mostra quanto era espantosa a sua construção - as três máquinas permaneceram no seu lugar; se elas também se tivessem soltado, o casco estaria tão danificado que nunca o teríamos podido salvar.
Mas quando o navio atingiu o fundo, três quilómetros mais abaixo, pôde ali ficar seguro durante séculos. A água estava somente dois graus acima do ponto de congelação, ali: a combinação do frio e da pressão impediu o apodrecimento e inibiu a ferrugem de se formar. Encontrámos carne nos frigoríficos tão fresca quanto ela estava ao sair de Southampton em 10 de Abril de 1912, e tudo quanto estava enlatado ou engarrafado ainda se encontrava em perfeitas condições.
Quando lhe tapámos os rombos - um trabalho simples ainda que demorasse um ano a vedar todos os buracos e a reforçar os pontos fracos - expulsámos a água com os foguetes de impulso zero que a gente dos salvamentos a grande profundidade inventou. Naturalmente, as condições de tempo eram críticas; por sorte, a previsão fora ideal para 15 de Abril de 2262, de modo que o navio voltou à superfície trezentos e cinquenta anos exactamente depois de se ter afundado. As condições eram idênticas - calma mortal, temperatura de congelação - e podem não acreditar, mas tivemos de evitar um icebergue quando começámos a rebocá-lo!
Portanto trouxemo-o para Nova Iorque, enchemo-lo de azoto para deter a ferrugem e a pouco e pouco secámo-lo. Aí não houve problemas - e os arqueólogos submarinos têm preservado navios dez vezes mais antigos do que o Titanic. Foi a simples escala do trabalho que nos fez demorar catorze anos, e nos demorará pelo menos mais dez. Milhares de pedaços dos móveis destruídos terão de ser reconhecidos e há centenas de toneladas de carvão a remover... quase todos os pedaços à mão.
Algumas vezes fomos perguntados - porque é que estão a fazer isto, devotando anos e milhões de dólares para salvaguardar o passado? Bem, posso dar-lhes algumas razões simples ou práticas. Este navio é uma parte da nossa história; podemos compreender-nos melhor, a nós e à nossa civilização, quando o estudamos. Alguém disse uma vez que um navio afundado é como uma cásula temporal, porque preserva todos os artefactos da vida de todos os dias, exactamente como estavam no último momento de uso. E o Titanic era como uma talhada de uma sociedade inteira, no momento imediatamente anterior àquele em que ela se começou a dissolver.
Temos o camarote de John Jacob Astor, com todos os valores e pertences que o homem mais rico do seu tempo ia levar para Nova Iorque. Podia ter comprado o Titanic - doze vezes. E temos a caixa de ferramentas que Pat O'Connor levava consigo quando entrou a bordo em Queenstown, esperando encontrar uma vida melhor numa terra que nunca chegou a ver. Temos até os cinco soberanos que ele conseguira poupar, ao longo de anos de sacrifícios como nunca poderemos imaginar sequer.
Estes são dois extremos: entre eles temos todos os tipos de vida - um tesouro precioso para o historiador, o economista, o artista, o engenheiro. Mas para além disso, há uma magia neste navio que tem mantido o seu nome bem vivo através de todos os séculos. A história da primeira e última viagem do Titanic é uma que tem de ser contada de novo em cada geração, não vão os homens esquecer os caminhos do destino e da sorte." 

Duncan estava tão absorvido que por um momento não reconheceu a mulher que acabara de entrar no Grande Salão e se mantinha junto de uma das portas ornamentais.

Sem comentários:

Enviar um comentário