A História da Colecção Argonauta


Um artigo que homenageia e nos conta a história da Colecção Argonauta

Caros amigos, o texto intitulado Glórias e agruras da colecção Argonauta: é o melhor artigo que tive oportunidade de ler até hoje sobre a Colecção Argonauta. Tendo sido publicado originalmente na Revista Bang!, da editora Saída de Emergência fica agora disponível também aqui no blog, com o acordo do seu autor, o Luís Filipe Silva, a quem expresso publicamente os meus mais sinceros agradecimentos pelo contributo.

O Luís Filipe Silva é um autor de Ficção Científica e Fantástico, galardoado em 1991 com o prémio Caminho de Ficção Científica pela colectânea O Futuro à Janela. É autor do Ciclo da GalxMente, composto à data pelos romances Cidade de Carne e Vinganças, e colaborou com João Barreiros no Terrarium - Um Romance em Mosaicos

Tem contos publicados em diversas revistas e jornais nacionais, bem como em Espanha, Brasil e Sérvia, e na antologia luso-americana Breaking Windows. Colaborou na área do Fantástico como crítico literário no Diário de Notícias, como editor de romances na Devir e como organizador nos Encontros de FC&F da Associação Simetria. É também organizador de uma tertúlia de leitura de textos literários. Nos últimos anos tem mantido uma presença assídua na internet, onde publicou uma revista por email Eventos que se transformou no actual site Tecnofantasia 

(Fonte das notas biográficas: http://www.saidadeemergencia.com/autor/luis-filipe-silva/)


                                                                      ********

Glórias e Agruras de uma Colecção de Ficção Científica: a “Argonauta” vista pelos testemunhos de personalidades lusófonas do género
Autor: Luís Filipe Silva


Sinopse: 

Se há colecção em língua portuguesa que, ao longo de várias gerações, esteve na origem da iniciação dos leitores à Ficção Científica, quer em Portugal quer no Brasil, bem como do surgimento dos primeiros movimentos associativistas e coleccionistas do género em ambos os países, esta será a Argonauta. Publicada pela editora portuguesa Livros do Brasil entre 1953 e 2006, deve a um conjunto de factores o estatuto de culto em que se tornou, entre os quais a longevidade ímpar, a regularidade de edição e formato (que contribui para o hábito de consumo) e a construção gradual de um extenso catálogo em cuja selecção se pode ler um entendimento assaz conservador do género, ainda que não necessariamente assumido nem constante (inclui, por exemplo, obras internacionais hoje consideradas canónicas a par de textos francófonos habitualmente ignorados pelos historiadores de língua inglesa). É também de assinalar que este catálogo é inteiramente composto, com uma única excepção, por títulos traduzidos: se a colecção contribuiu para a formação leitora, não representou abertura para a produção de FC em língua portuguesa. Mais do que uma análise crítica, o presente artigo propõe uma intenção de percurso pelos temas apresentados, recorrendo a testemunhos e memória de personalidades portuguesas e brasileiras do género que sejam também representantes das várias gerações de leitores. 


     Estava-se em 1953 e Alfred Bester vencia a  única categoria de ficção (na modalidade de romance) do primeiro prémio Hugo de sempre com O Homem Demolido. Os marcianos desciam numa América rural insuspeita a convite de George Pal, Quartermass salvava a Humanidade de um alienígena vegetal e o milionário Donovan era salvo e condenado perante audiências desconfiadas da ciência. Estreava em Espanha a colecção de ficção de polpa Luchadores del Espacio, Itália adiantara-se um ano com a Urania, e a Presence du Futur entraria no ano seguinte no pujante mundo da Ficção Científica (FC) francesa. Vivia-se a Guerra Fria, um mundo de terror atómico, pleno de espiões e ameaças veladas, de perseguições anti-comunistas e desconfiança generalizada na capacidade do Homem em sobreviver às suas próprias criações. Ainda assim, falava-se de futuros gloriosos, de contactos com seres de outras Terras e de colonização galáctica nas páginas da Astounding, Magazine of Fantasy and Science Fiction e Galaxy. Estava-se a quatro anos do lançamento do primeiro satélite fabricado por mãos humanas, o Sputnik 1, que deu início à actualmente designada era espacial, e a dezasseis da primeira viagem tripulada à Lua.
Estava-se em 1953, e ainda antes de findar este movimentado ano, nasceria em Novembro uma nova colecção portuguesa que ficaria nos escaparates durante cinco décadas, apresentaria autores de FC ao público lusitano e atravessaria o oceano para contaminar o paladar dos leitores brasileiros. Uma colecção cujo nome evocava tradição, epopeia e aventura: a Argonauta.

     A viagem que nos propomos fazer é uma de memórias e testemunhos, pois é a única deslocação temporal permitida à espécie humana. Entrevistámos assim por e-mail em 2013 um conjunto de autores, tradutores e críticos portugueses e brasileiros para quem a Argonauta serviu de incentivo à imersão no género e que considerámos, para o efeito do presente artigo, também como representantes das suas gerações. São estes os portugueses António de Macedo (n. Lisboa, 1931, autor e realizador), João Barreiros (n. Lisboa, 1952, autor, antologista, tradutor e crítico), Ricardo Loureiro (n. Almada, 1969,  autor, bloguista e editor de fanzines), Jorge Candeias (n. Portimão, 1966, autor e tradutor), José de Freitas (n. Aarhus, 1964, editor, aqui presente na qualidade de filho do pintor e tradutor Lima de Freitas), João Seixas (n. Viana do Castelo, 1970, autor, antologista, tradutor e crítico) e os brasileiros Bráulio Tavares (n. Campina Grande, 1950, autor e crítico), Roberto de Sousa Causo (n. São Bernardo do Campo, 1965, autor, tradutor, editor e investigador académico) e Gerson Lodi-Ribeiro (n. Rio de Janeiro, 1960, autor, editor e antologista). Pedimos que recordassem o primeiro contacto com a colecção, bem como episódios marcantes da sua vida enquanto leitores, e que opinassem sobre a importância da mesma para o espaço lusófono do género. Organizámos as respostas de acordo com as tendências e paralelos encontrados, complementando com uma avaliação do conteúdo do catálogo da colecção. O resultado encontra-se nos capítulos seguintes. 


«Já nasceu! E é de bolso!»

     Antes de mais, os dados biográficos: deu-se à luz em Novembro de 1953 e remeteu-se ao silêncio em 2006, em mês incerto. De mãe, a Editora Livros do Brasil, e de pai, António de Souza-Pinto, o fundador da empresa. Durou 564 números ininterruptos com periodicidade mensal (excepto nos últimos anos em que foi irregular), mais o acrescento em 1968 do raríssimo n.º 130-A (Estação de TrânsitoWay Station, de Simak)[1]. Continha essencialmente FC, com alguma Fantasia à mistura, e era relativamente actual: perto de quarenta títulos foram publicados apenas com um ano de diferença ao da respectiva edição original estrangeira, e aproximadamente duzentos com um máximo de cinco anos. Para a colecção contribuiram centena e meia de autores e meia centena de tradutores oficiais. Vendia-se em Portugal e no Brasil, não obstante uma indicação na ficha técnica que proibia este acto na «República Federativa do Brasil». E se considerarmos uma dimensão média de 250 páginas por livro, estamos perante 112 mil páginas de literatura Fantástica e anos de leitura.

      Nenhuma outra colecção de FC atingiu no espaço lusófono tal dimensão, importância e longevidade, nem contribuiu, até hoje, para a formação básica de várias gerações de apreciadores do género. 


Primeiro contacto

     Se há factor que una os apreciadores é aquele momento ou circunstância em que a Argonauta lhes entrou na vida e que se torna uma memória acalentada e contada com o pormenor de quem descobriu um segredo valioso. Cada qual conta a sua história, mas são os mesmos os pontos de união, são familiares os motivos que os integram na comunidade.

     Pode ter origem na recomendação de um amigo ou familiar: «uma tia minha, que coleccionava a Argonauta, contou-me ao jantar, sobre um lago de alcatrão, num planeta perdido na periferia da Galáxia, onde residia um computador que guardava o registo das "almas" de toda a espécie humana [e que] estaria defendido por milhares de morcegos gigantes» (Barreiros).

     Surge por acidente, por estar-se ali, naquele instante, diante do mostruário de uma livraria e deparar-se com a capa cuja ilustração, título ou autor despertam lembranças de outras leituras ou imprimem promessas de mundos maravilhosos: «uma bela manhã em Sesimbra, com o calor já a apertar, entrei numa daquelas papelarias/tabacarias que na altura ainda vendiam livros e eis que, num escaparate de arame daqueles que rodam sobre um eixo, deparo com uma série de livrinhos que de imediato atraem o meu jovem olhar» (Loureiro).

     Por vezes, a sedução demora: «houve um livro da Argonauta que sempre exerceu um terrível fascínio sobre mim: A Árvore Sagrada [n.º 224], um dos livros dos meus pais, publicado cá em 1972, e que eu me lembro de ser uma presença constante [pela casa]. Nunca li o livro, mas cresci fascinado pela capa - melhor dizendo, pela contracapa - onde um gigantesca iguana verde está prestes a devorar um astronauta de imaculado branco que paira sobre ela, filmando-a, contra um céu de um laranja intenso» (Seixas).

     O rosto sorri-nos e bate as pestanas: «nessa bela manhã escolhi mais por virtude da capa que mostrava um vaivém espacial, - na altura ainda um protótipo, os primeiros voos seriam 3 anos mais tarde-, a dirigir-se a um planetóide âmbar, visivelmente artificial, do que por conhecer o nome do autor de algum lado, o livro Exilados da Terra (n.º 249) de Ben Bova» (Loureiro).

     A sensação do primeiro contacto transpõe oceanos: «descobri a Colecção Argonauta em Janeiro de 1977, em plena Rodoviária Novo Rio, quando estava prestes a embarcar numa viagem de férias para o interior do estado.  Como se tratava de um romance do Clifford D. Simak, meu autor predileto, não hesitei em adquirir o livrinho de capa prateada, n.º 227 da coleção, O Outro Lado do Tempo (Enchanted Pilgrimage)» (Lodi-Ribeiro).

     Atravessa gerações: «é um bocado difícil recordar coisas desses tempos iniciais, já lá vão 60 anos - quando saiu o primeiro livro em 1953, tinha eu 22 anos e cursava Arquitectura, e lembro-me que o primeiro livro que comprei foi o n.º 7, Inconstância do Amanhã (Tomorrow Sometimes Comes), de F. G. Rayer, livro que me deixou então positivamente fascinado, e depois disso passei a ser um consumidor assíduo da colecção» (Macedo).

     Espalha-se por territórios e culturas: «conheci a coleção Argonauta por volta dos 12 ou 13 anos, na Livraria Pedrosa, em minha cidade natal (Campina Grande, Estado da Paraíba). Era uma excelente livraria, até para os padrões de hoje » (Tavares).

     Planta sementes no espírito do leitor: «Quando, depois de ler A Nebulosa de Andrómeda, pedi ao meu pai mais livros do mesmo género, aconteceram duas coisas. Por um lado, fiquei a saber que existia uma coisa chamada ficção científica. Por outro, tive nas mãos o meu primeiro Argonauta.» (Candeias).

     O primeiro contacto abre a porta que não se volta a fechar: «para mal dos meus pecados, e do dinheiro dos almoços e lanches escolares, a colecção Argonauta, argutamente, mantinha nas primeiras páginas uma lista com os últimos números publicados e nas últimas páginas uma pequena amostra do volume seguinte da colecção. Tudo isto servido com uma periodicidade mensal» (Loureiro).

     Cria um vício a que não se quer fugir: «depois do primeiro veio o segundo, e logo o terceiro» (Candeias).

     Deixa na alma, gravados a fogo, o nome de mundos e autores, tão irreais e desconhecidos a início como rapidamente se tornam familiares: «o primeiro livro da Argonauta que li foi Os Frutos Dourados do Sol de Ray Bradbury [n.º 55], de quem eu já tinha lido alguns contos em antologias» (Tavares).

     Evoca-se aquela aventura tão íntima, mais tarde, com o toque de nostalgia e prazer da recordação de uma descoberta que não retorna: «[A história contada pela minha tia] era a do Ortog, do escritor francês Kurt Steiner (André Ruellan), um dos primeiros livros da Argonauta [n.º 66]. Li-o com um arrepio crescente de horror, porque, aos meus olhos inocentes de então, o livro era bem sinistro. Depois descobri nas estantes da minha própria casa mais uns três ou quatro Argonautas. Peguei num. Missão Interplanetária do Van Vogt [n.º 9]. Li-o às escondidas, por baixo do lençol, com a lanterna acesa. E, claro, voltei a borrar-me de medo, porque os monstros nele descritos eram verdadeiramente assustadores. Mais tarde descobri todos os livros do Stefan Wul e ele foi, durante muitos anos, um dos meus autores favoritos» (Barreiros).

     Mas a inocência deu lugar ao encantamento, e este perdura por uma vida: «Galactic Patrol de E. E. «Doc» Smith  com o apropriado título de Patrulha Galáctica (n.º 270), e com uma despropositada nave USS Entreprise na capa: foi este o livro que verdadeiramente iniciou o dilúvio de FC para mim. Ali, perante os olhos da minha imaginação, desfilava aquilo que milhares de fãs de FC conhecem como o sentido do maravilhoso (sense of wonder). Vastas naves enfrentavam-se em batalhas cruéis e planetas recheados de alienígenas malévolos eram bases secretas de Impérios do Mal» (Loureiro).

     Como eles, encontrei a Argonauta, ou esta encontrou-me, depois de estar desperto para a existência de Ficção Científica. Pertenço à geração das capas prateadas, cujo «tom metálico» (RL) orlava ilustrações enigmáticas, raramente ilustrativas de uma cena do livro, mas compostas «invariavelmente de fotomontagens e/ou colagens com naves, planetas e estranhos sóis» (RL). A edição de entrada foi O Número do Monstro – 1.º volume, do Heinlein [n.º 294], mas admito que poderia ter sido qualquer outro. Heinlein era o autor que melhor conhecia do conjunto de exemplares no escaparate de uma tabacaria de praia. Ali, tão mansamente pousados, quais pepitas num concurso de garimpagem. «O prazer da descoberta pela primeira vez de livros-chave do género é uma experiência tão intensa que é quase comparável à da descoberta do sexo» (Seixas). Porque estes encerram as chaves do mistério. Ainda hoje, sempre que passo pela loja que substituiu este local, recordo. 

     Estava-se no tempo das escolhas: as bibliotecas sub-urbanas ou escolares não adquiriam Ficção Científica e a mesada não chegava para tudo. O que nos é negado alimenta a íntima vontade. Exemplar a exemplar, fui adquirindo, e lendo, o que estava disponível. A colecção tinha, já, quase trinta anos, mais do dobro da minha idade – e eu, que andara tão distraído no limbo, tardando em nascer. 


As Fases Siderais

     Como qualquer boa colecção que se preze, e em particular, numa de tão longa duração como a Argonauta, é possível demarcar períodos.

     O mais óbvio será a nível do formato. Desde o primeiro número, apresenta-se como livro de bolso com uma dimensão regular de duzentas páginas, um pouco menor que o paperback americano, o que é mantido até à decisão da editora, em 2004, de aumentar ligeiramente o tamanho com o n.º 553 (A Grande Roda – The Big Wheel, de William Rollo) e seguintes - uma decisão mal recebida pelos apreciadores[2], talvez em parte pela transformação radical das ilustrações num estilo quase abstracto que representa um retrocesso face à revolução de cores e imagens chamativas em voga no mercado editorial. Mas até então, a Argonauta arriscou periodicamente a mudança – que por vezes se estranhava mas que acabava por ser bem-vinda – de alterar a composição da capas, de introduzir estilos e técnicas de imagem e de criar um corpo consistente de ilustradores de reconhecido mérito e ímpar numa colecção de FC publicada em Portugal até aos dias de hoje.

     O primeiro foi Cândido Costa Ribeiro, que ilustrou as capas do n.º 1 ao 32 (Robinsons do Cosmos - Les Robinsons du Cosmos, de Francis Carsac), conhecido artista plástico e designer gráfico português que se radicou no Brasil no final da vida e cujas inclinações surralistas terão influenciado os desenhos fortemente simbólicos daquela sequência. Mas será com o n.º 33, o agora famosíssimo Fahrenheit 451 de Bradbury (em 1956, apenas três anos após o lançamento da edição original e traduzido por Mário Henrique-Leiria), que se dá início à contribuição de Lima de Freitas, um dos mais conhecidos pintores e desenhadores portugueses do século XX e figura marcante na vida da colecção.

     Freitas vem trazer um dinamismo e uma riqueza de composição a obras de autores tão distintos como Heinlein, Simak e Versin, e marca presença até 1975, dando a última capa ao n.º 221 (Eclipe Total – Total Eclipse, de John Brunner). Este impressionante volume de trabalho rivaliza com o ritmo dos tradutores e faz da colecção uma verdadeira fábrica de produção de FC – com o encargo adicional que o pintor tinha de ilustrar também a edição mensal da congénere policial. «Lembro-me bem de os meus pais partilharem o trabalho de ler os livros de FC e policiais que o meu pai tinha que ilustrar. Era um ritmo razoavelmente forte, dois livros por mês, mas a minha mãe era fanática devoradora de policiais, e lia tudo num instante para contar ao meu pai algum pormenor marcante que o inspirasse numa capa» (J. Freitas).

     A contribuição de Freitas atravessa alguns períodos distintos de composição das capas: até ao n.º 100, a ilustração surge isolada do título e do nome do autor, que a encimam. Mas com o 101.º (Nova Ameaça de Andrómeda - Andromeda Breakthrough, de Fred Hoyle e J. Elliot), título e autor passam a surgir incorporados, e a ser influenciados, pelo próprio desenho (veja-se o caso do n.º 136, Ave Marciana – A Far Sunset, de Edmund Cooper). É evidente que este espaço se torna, também, num laboratório para o artista: «O meu pai passou nessa altura (anos 70) a fase de fazer capas a partir de fotos, um método experimental que aparentemente granjeou bastante popularidade, embora eu pessoalmente não apreciasse tanto, comparado com algumas capas mais antigas que ele tinha feito: umas mais estranhas e abstractas (lembro-me da do Síndico, do Cyril Kornbluth, ou a do Homem Demolido, do Bester, mais brutais e expressionistas), outras mais realistas (O Tempo das Estrelas, do Heinlein, por exemplo). Mas as fotos duraram algum tempo, e por elas passaram os pedaços dum foguetão Apolo que eu tinha construido com [ele] aos 7 anos, uma estátua dum amigo nosso em O Planeta Neutral, uma figura de um astronauta que eu tinha comprado em França, em O Ponto Ómega, e que reapareceu em Os Homens das Estrelas, ou por exemplo, na Vampiro, a minha tia Jenny (dinamarquesa) a fazer de Miss Marple!» (J. Freitas).

     A fase seguinte da colecção, talvez a mais distintiva, é a prateada: título e autor voltam a autonomizar-se e a dominar o terço superior da capa, impressas sobre um tom cinzento brilhante, relegando a ilustração para uma ideia de «janela», talvez como recuperação da ideia da entrada num mundo maravilhoso. Começando no n.º 225 (Em Busca do Futuro - Quest for the Future de Van Vogt), vai durar até ao n.º 300 (O Mistério de Valis – Valis – 1º volume, de Dick), a partir do qual a orla cinzenta é substituída por uma azul. As ilustrações são, primeiro, da mão de Manuel Dias, numa breve incursão após Lima de Freitas, e logo após, de António Pedro, o qual vai assegurar o rol impressionante de centenas de capas entre o n.º 254 (As Vozes de Marte - I Sing the Body Electric de Bradbury) e o último. Apesar do expressionismo e ocasional simbolismo dos desenhos, é por vezes um desafio conseguir relacioná-los com a obra que ilustram ou sequer uma cena particular da narrativa...

     A partir do n.º 333, desaparece a orla e o conceito de janela, voltando a ilustração a dominar a capa, à qual se sobreimpõem o título e o autor, composição que vai permanecer até ao formato derradeiro que acima se mencionou. 


Autores, tempos e geografias 

     Mas, se o aspecto é o factor de mudança mais óbvio, também a nível de conteúdo a Argonauta teve os seus períodos distintos – ainda que mais duradouros.

     Primeiramente, pelas obras escolhidas. A colecção arranca com um autor pouco conhecido: Archibald Montgomery Low, engenheiro e investigador inglês que, a par de dezenas de ensaios, escreveu apenas quatro romances de ficção para jovens, e nenhum dos quais entrou no cânone da FC. Mesmo assim, a aventura espacial de Perdidos na Estratosfera (Adrift in the Stratosphere) parece perfeitamente adequada para atrair desde logo a imaginação dos leitores.

     Será o evoluir dos títulos que faz suspeitar da ausência de um critério editorial sólido a guiar a escolha.

     A primeira década é marcada pelo um predomínio dos «grandes nomes» – Asimov (através do seu próprio nome ou do pseudónimo Paul French), Bradbury, Heinlein, Clarke – em, aproximadamente, um sexto dos livros, pertencendo os restantes a autores da época pulp (Leinster, Siodmak, Van Vogt)[3] e obras reconhecidas no género (O Cérebro de Donovan, Slan, Mundo de Vampiros); em suma, uma aposta evidente na popularidade.

     A presença regular[4], a partir do n.º 22 (Vigilância Sideral - Les Étoiles ne s'en Foutent Pas de Pierre Versins) de autores francófonos[5], representando um terço das escolhas dos primeiros 100 números – além das presenças pontuais de Onochko (russo) e Čapek (checo) – anuncia uma inversão da tendência pró-americana, que apenas surpreende se, ao invés de a entendermos como uma aposta invulgar na FC europeia, considerarmos que advém do uso de tradutores mais familiarizados com a língua francesa.
Esta desconfiança consolida-se se notarmos que a entrada de Eurico da Fonseca para a função de tradutor, e a sua continuidade durante centenas de títulos, acontece a par da erradicação de obras de língua não-inglesa do catálogo, o que tem início no n.º 107 (O Império dos Mutantes - La Mort Vivante de Stefan Wul) e segue até ao final. As excepções pontuais representadas pelo francês Barbet (n.ºs 251 e 258), pelo polaco Lem (n.º 264) e pelos russos irmãos Strugatski (n.ºs 307 e 308) explicam-se facilmente: foram traduzidos a partir das edições americanas, com todos os problemas de fidelidade inerentes à tradução de traduções...

     Há pelo menos um caso confirmado de influência de um colaborador na selecção das obras: «o meu pai frequentemente sugeria os títulos a traduzir, embora isso normalmente não fosse creditado» (J. Freitas). Lima de Freitas foi também responsável por organizar e traduzir os contos do n.º 100, uma antologia comemorativa «que reuniu uma quantidade notável de histórias, algumas das quais foram consideradas das melhores de sempre, como “Flores para Algernon”, e penso que a primeira história traduzida para português do Lovecraft, Jorge Luis Borges ombreando com Arthur Clarke, Efremov e Bradbury» (J. Freitas). Efectivamente, a apresentação deste número é bastante explícita[6]: «num volume duplo de mais de quatrocentas páginas, posto à venda pelo preço de um volume simples, o nº 100 da Colecção Argonauta oferece um panorama completo da evolução da Ficção-Científica, desde Júlio Verne aos Astronautas. Entre centenas de autores, entre milhares de obras, foram seleccionados os mais belos contos dos escritores mais representativos em todo o mundo, formando uma antologia de características absolutamente inéditas entre nós», destinado ao que já se mostrava ser «um público fiel e, até, entusiástico».

     Mas, se é natural que diferentes apreciadores tenham diferentes preferências, e orientem as selecções para as obras que conhecem (e que são capazes de ler), também decorre que a ausência de um crivo editorial coerente tenha contribuido para manter e até salientar certos defeitos de fabrico que foram prejudicando a colecção e, eventualmente, antecipar-lhe o fim num contexto de crescente competitividade em que tais falhas já não eram perdoáveis pelos leitores. 


Calcanhares de Ciberaquiles 

     Apreciar a colecção é também reconhecer os seus defeitos. Defeitos, não de matéria mas de substância. Se o papel era de menor qualidade, se a edição se desfazia entre os dedos com o excesso de uso, se as folhas amarelavam quando demasiado expostas ao sol, se os títulos eram por vezes absurdos quando comparados com os originais (quem terá tido a infeliz ideia de verter The Big Time de Leiber para O Tempo, o Espaço e o Cérebro? [n.º 415]) ou desvendavam o segredo da história antes de se abrir a primeira página (Non-Stop de Aldiss para Nave-Mundo [n.º 333]), os leitores aceitavam as falhas como sendo peculiaridades, como se aceita um carro feio, barulhento, difícil de conduzir, mas que acaba levando-nos na viagem prometida.

     Menos aceitável seria a tendência, que começou com o n.º 103 (Perdido no Espaço - I - Marooned de Martin Caidin), de dividir um romance mais extenso em dois ou mais volumes da colecção.

     É uma opção editorial de foro económico, pois permite distribuir custos de produção, como a tradução e a compra de direitos da obra, por diversos volumes, de forma a manter o preço de capa unitário a níveis constantes. Aplica-se aqui um racional pela negativa, pois o receio é de que o leitor, para quem o preço constitui factor decisivo, se recuse a adquirir um tomo único e extenso que seja invulgarmente caro. Diga-se de passagem que este pensamento tem a sua razão de ser, e em muitos casos, é perfeitamente razoável aplicá-lo para determinados segmentos ou obras, permitindo a realização da leitura em (suaves) prestações

     Mas a opção tem um busílis: é normal que o custo acumulado das várias partes seja mais oneroso do que seria a alternativa do volume único. A editora fica a ganhar, no curto prazo, pois uma percentagem significativa dos compradores do primeiro livro quererão conhecer o fim à história, assegurando as vendas dos seguintes. Mas o mercado acaba por se aperceber e ganha aversão à prática, se levada ao exagero. Os leitores fazem contas, medem o tamanho de cada tomo, perguntam-se porque estão a pagar várias vezes pelo mesmo livro. E num contexto de colecção com edições fixas por ano, cada número dedicado a continuar o anterior representa menos um novo título, na prática – menos um romance, menos um autor a descobrir. Aos leitores interessados em ter a colecção completa, deixar de adquirir não se afigura uma escolha possível.

     Dos 565 números da Argonauta, aproximadamente oitenta são ocupados pelas segundas e terceiras partes de romances cortados às fatias. Referimo-nos a casos em que a divisão foi assumida; outros houve, como os de certas antologias e colectâneas, em que os títulos portugueses escolhidos não revelam o facto de representarem divisões da mesma obra (veja-se, a título de exemplo, a antologia The Future in Question, organizada por Asimov e outros, que foi dividida nos n.ºs 320, Mensagens do Futuro, e 327, O Que Será o Futuro).

     Fazendo contas, equivale a sete anos – quase um quinto da vida da colecção – de números desperdiçados com esta prática!

     Talvez a pior época dos tempos áureos tenha ocorrido em 1982, em que os três volumes de O Número do Monstro (n.ºs 294 a 296) de Heinlein são seguidos por outros três do Planeta dos Dragões (n.ºs 297 a 299) de McCaffrey e estes, por dois do Mistério de Valis (n.ºs 300 a 301) de Dick: ao final de oito meses seguidos, os leitores ficaram a conhecer apenas três novas obras.

     Seria de esperar que, com o crescimento do sector editorial e a expansão da oferta, nos anos 90, houvesse uma mudança de estratégia. Estranhamente, o que se verifica é uma intensificação da prática: a partir de 1998, dos 75 números finais publicados, 21 constituem continuações...

     Outro problema importante (que Loureiro designa jocosamente por «Lei Editorial Nacional» por se aplicar uniformemente a todas as colecções de FC portuguesas) refere-se à forma como as séries eram conduzidas. Apanágio e tradição do género, as sequências narrativas que atravessam vários livros requerem um manuseio delicado: uma vez iniciada a publicação, há que decidir se o volume de vendas da parte anterior justifica editar a seguinte. Mas nesta decisão deve ter-se em conta que houve leitores a comprar, os quais ficarão frustrados perante histórias deixadas a meio, correndo-se o risco de afastá-los da colecção como um todo.

     São vários os exemplos em que isto aconteceu na vida da Argonauta.O «n.º 249, Exilados da Terra [...] fazia parte duma trilogia que [...] nunca chegou a ter os dois seguintes cá publicados» (Loureiro). A série das «Crónicas de Âmbar» de Zelazny, composta na língua inglesa por dez livros, apenas verá sete traduzidos, e a do «Centro Galáctico» de Benford verá dois em seis – sem contar com o fenómeno bizarro de se terem publicado os segundo e terceiro livros da trilogia da «Fundação» de Asimov em 1964, mas não o primeiro...[7] 

     Não obstante estes problemas, nenhum prejudicaria tanto a colecção como a qualidade das traduções.

     Traduções «onde as expressões idiomáticas eram invariavelmente traduzidas à letra» (Loureiro). Traduções que acolheram, no início, figuras de destaque – como o escritor surrealista Mário Henrique-Leiria, e a (futura) tradutora das principais obras de Tolkien, Fernanda Pinto Rodrigues – mas que acabariam por ser dominadas, a partir do n.º 103, pela voz ubíqua e, na opinião de alguns leitores, redutoramente uniforme, de Eurico da Fonseca, especialista autodidacta em astronáutica cuja simpática presença na televisão foi prenúncio, durante anos, de um entusiasmo contagiante pelas coisas do espaço. Eurico da Fonseca traduziria mais de 250 dos títulos da colecção, ou pelo menos, aporia o seu nome nos mesmos. Porque uma das questões relativas à tradução na Argonauta tem a ver com a sua autoria. 

     «Durante anos sempre estranhei a profusão de títulos traduzidos por Eurico da Fonseca, e pensava que ou o homem tinha um enorme repositório de traduções já feitas, ou era super-humano [...]. Décadas mais tarde, parte do mistério desvaneceu-se quando conheci um, à falta de melhor expressão, “ghost-translator”, que me provou cabalmente que uma boa vintena de títulos foram por ele traduzidos, embora publicados pela Livros do Brasil sob o nome de Eurico da Fonseca. E quantos mais títulos teriam assim sido?» (Loureiro).

     Prática que aparentemente acompanhou a colecção desde início: «Fernando Castro Ferro traduziu vários livros para a Argonauta, e em dado momento o trabalho acumulou-se-lhe porque tinha vários livros para traduzir e não dava conta do recado. Eu nessa altura andava com as “finanças” muito em baixo e ele propôs-me que eu traduzisse dois dos livros. Concordei, era uma maneira de ele cumprir os prazos de tradução que se tinha comprometido com os Livros de Brasil, e eu recebia umas massas que me davam um jeitão. A única condição era que nas traduções não figurasse o meu nome mas o dele, para que ele não perdesse o compromisso que tinha com o editor. Aceitei, e o único desgosto que tenho é que passados todos estes anos não sou capaz de me lembrar quais foram os livros que traduzi, e não há maneira de descobrir porque o meu nome não figura lá» (Macedo).

     A falta de percepção de que o público-alvo evoluía, crescia, refinava os gostos, não permitiu à editora repensar a colecção com outro nível de qualidade e de investimento editorial.

     Entenda-se que a experiência inicial, comum aos apreciadores, era positiva: «a questão da tradução não me passava muito pela cabeça na época, aceitávamos o texto em português (brasileiro ou não) sem questionar. Só depois dos 30 anos de idade passei a ler preferencialmente no original» (Tavares).   

     Mas também era comum o desalento posterior: «foi na Argonauta que pela primeira vez compreendi como um mau tradutor pode assassinar um livro por completo (a vítima foi Roderick [n.º 386] do pobre do John Sladek)» (Candeias).

     Desalento que acabaria em abandono: «entre 1986 e 1989, à medida que comecei a ler cada vez mais ficção científica em inglês, fui me desiludindo com os livros da Argonauta.  Sempre que relia o original de um romance do Clifford Simak que já havia lido pela coleção, parecia estar desfrutando de um novo romance, muito mais rico e bem escrito, porém, compartilhando da mesma temática da tradução que eu já conhecia. Foram essas traduções malfeitas e, em muitos casos, resumidas, que me fizeram abandonar a Argonauta no fim da década de 1980» (Lodi-Ribeiro).

     E o monstro acabou virando-se contra o criador: «criou um público para a FC em português, mas também o destruiu. Muitos de nós, que ainda continuamos hoje a consumir FC em português, devemo-lo à Argonauta; mas julgo que muitos dos que deixaram de o fazer também foi devido à falta de qualidade da coleção na sua fase final» (Candeias). 


O Silêncio Lusófono

     É um defeito que poucos lhe apontam. A meu ver, como leitor mas principalmente como autor de língua portuguesa, é o único que não tem desculpa. 

     «Se no Brasil, [o editor Gumercindo Rocha] Dorea criara um espaço para desenvolvimento de projectos literários [de autores nacionais de FC na sua colecção GRD], e em Espanha, [Domingo] Santos seguia-lhe as pisadas [pela colecção Nueva Dimensión], em Portugal, onde a colecção Argonauta teria início coincidente com essas duas iniciativas e igual finalidade, o acolhimento de obras nacionais foi nulo [...]. Sem querer menosprezar a sua contribuição importantíssima para a divulgação da FC internacional, a verdade é que, nas centenas de títulos editados durante os cinquenta anos de actividade, não encontramos um único autor português, e só em [2005] é que uma brasileira, Márcia Guimarães (A Conspiração dos Imortais), consegue romper este impenetrável crivo editorial. Se o mesmo resultou de decisão consciente do director de colecção, ou se os manuscritos submetidos (porque decerto os haveria) simplesmente não eram considerados como tendo qualidade suficiente face às obras estrangeiras, é algo que se desconhece. Mas não deixa de ser sintomático, e pouco abonatório para a produção nacional, que nunca um português tivesse sido incluido na mais antiga e prestigiada colecção de FC do país, numa época em que o incentivo teria certamente produzido efeitos benéficos para o desenvolvimento do género.» (Silva, p. 7).    

     Apenas nos anos 80 uma editora – a Caminho – apostaria com regularidade nos autores de fala portuguesa. Trinta anos depois. 


Que Vida depois da Vida

     «Poderia falar aqui das horas passadas na caça a Argonautas em alfarrabistas do Porto, em busca de lograr completar as colecções de Heinlein, Farmer, Dick, Silverberg (o que consegui, reunindo todos os que foram publicados em português), mas essa, penso eu é uma experiência comum» (Seixas)

     Onde encontrar, hoje em dia, os livros da Argonauta? Alfarrabistas de Portugal, com alguma dificuldade. Sebos do Brasil, imagino que com bastante. Quem os procura, sabe reconhecer as raridades, nem que seja pelos preços mais elevados. Alguns números são relativamente frequentes, outros nem por isso. Os derradeiros números ainda se encontram nas feiras do livro portuguesas em primeira mão.

     Não deixa de ser curioso o afinco com que os apreciadores hoje recolhem, inventariam e mantêm a memória, na ausência, de livros que, no seu auge, foram sumariamente ignorados pela crítica literária. Não obstante as imperfeições, a Argonauta esteve no centro de várias comunidades de leitores – e ainda está –, muito antes das redes sociais.

     Os efeitos secundários foram-se manifestando ao longo das décadas e ainda hoje se sentem – com particular destaque, em Portugal, para o caso de João Vagos, que criou um blogue dedicado a cada um dos títulos da colecção[8] e gravou uma série de vídeos em que os apresenta com evidente nostalgia[9].

     O Brasil antecipou esta iniciativa e foi mais longe: «foi na  Camões [livraria especializada na comercialização de títulos portugueses] que comprei um livro brasileiro em novembro de 1985: Quem é Quem na Ficção Científica nº 1 - A Coleção Argonauta, (Scortecci, 1985), de Roberto Cezar Nascimento[10].  O livro analisava os títulos da coleção, desde o número 1 até o 312.  Nas últimas páginas do exemplar havia um formulário com uma proposta para a criação de uma agremiação de leitores de ficção científica. Vários leitores gostaram da ideia e remeteram os formulários preenchidos de volta ao autor, semeando assim a iniciativa dessa agremiação que viria a se tornar o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC), a entidade mais pujante de seu gênero durante a década de 1986-1995.  Roberto Nascimento foi o primeiro presidente do CLFC e também o primeiro editor do Somnium, periódico da agremiação. Uma das motivações principais do CLFC naqueles primeiros anos foi estabelecer uma rede de troca de livros de FC em geral e exemplares da Coleção Argonauta em particular. De fato, à medida que as coleções de mais e mais sócios veteranos foram se completando, esses sócios foram paulatinamente se afastando do convívio com o fandom.  Pouco a pouco, o CLFC se transformava, de um clube de colecionadores numa agremiação de produtores e articuladores de literatura fantástica» (Lodi-Ribeiro).

     Se há característica que distingue o fã de FC é precisamente a apetência para socializar em torno dos temas do futuro – é bizarro, pois normalmente, ele (e ela) é retratado por quem está de fora como um indivíduo com dificuldades de socialização. «Nascimento escolheu bem a plataforma para o seu gesto de comunicação com outros fãs – aparentemente a Argonauta já despertava paixões entre pessoas que não se conheciam, e que se sentiram entusiasmadas com a descoberta de outros “semelhantes”. E assim foi que a Coleção Argonauta se tornou o componente de uma subcultura nacional que, por suas origens, comunica-se com uma vasta subcultura global formada por fãs de FC e fantasia em todas as partes do mundo» (Causo).

     Extinta, a colecção resiste no saudosismo e nas estantes dos últimos completistas. Mas há que lembrar que não sairão novos números, não se reeditarão os antigos. Os exemplares que existem continuam a amarelecer, a decompor-se, a desaparecer da memória. E não parece haver colecções actuais capazes de desempenhar o mesmo papel: «o seu catálogo, conjugado com a tremenda disponibilidade nos pontos de venda, permitia a qualquer pessoa, em dado momento, adquirir uma educação intensiva no campo da Ficção Científica. Mesmo quando tinha que repartir a sua atenção pelas colecções das outras editoras, o catálogo Argonauta possui um núcleo de obras relevantes, de autores relevantes que, ainda que com lacunas, permite adquirir um panorama geral da evolução do género. Algo que hoje desapareceu, o que justifica a iliteracia em termos de FC de grande parte daqueles que se dizem fãs, uma iliteracia derivada de um contacto totalmente fragmentário com poucas obras, mal selecionadas, e sobretudo com videojogos e filmes como principal ponto de contacto» (Seixas).

     É bizarro pensar que o género que sempre falou sem medos do futuro receia agora pelo seu próprio devir, receios que atravessam fronteiras: «sem um lar, sem um abrigo, como podem os novos leitores, os novos fãs, surgirem? O futuro da comunidade brasileira de FC se torna uma incógnita. Haverá uma nova geração, e formada através do quê? Do cinema, que parece ter destruído a FC nesse meio, justo agora que as imagens geradas por computador prometem um realismo nunca antes alcançado pelo gênero – e níveis de imbecilidade também nunca alcançados, nem mesmo na infantil FC da década de 1950? Serão os novos fãs garimpeiros de sebo, revirando o passado editorial brasileiro e português, em busca do que os inspire?» (Causo).

     Talvez, afinal, seja um problema intemporal e irresolúvel: «quando um professor me aconselhou a que lesse as obras de Júlio Verne, não o fez para que o meu espírito se soltasse e navegasse á vontade pelo tempo e pelo espaço, mas sim para que, através das páginas de “A Ilha Misteriosa”, aprendesse como até numa ilha perdida os conhecimentos de matemática, física e química, eram indispensáveis. Pena é que muitos dos jovens de hoje nem sequer se apercebam disso» (Fonseca, pp. 3-4). Talvez, tendo este exemplo presente, devamos descansar e esperar pelo melhor.

     É bom recordar que cada «geração tem a sua coleção ou as suas coleções formadoras» (Causo). E, «afinal de contas, desde meados da década de 1950, com suas falhas e acertos, foi a Argonauta que possibilitou o primeiro contato de muitos leitores portugueses e brasileiros com o mundo encantado da literatura de ficção científica» (Lodi-Ribeiro), por isso muito lhe devemos do que hoje somos. 


                                                              ********

Agradecimentos e referências

     A António de Macedo, João Barreiros, Bráulio Tavares, Roberto de Sousa Causo, Gerson Lodi-Ribeiro, Ricardo Loureiro, Jorge Candeias, José de Freitas e João Seixas, pelos imprescindíveis e informativos testemunhos que limites editoriais não permitiram incluir na integra. E à Saida de Emergência pelo convite a uma breve mais importante reflexão luso-brasileira.

     Este artigo não teria sido possível sem duas referências bibliográficas imprescindíveis: o site Bibliowiki, mantido por Jorge Candeias, e o site amador da colecção Argonauta mantido por João Vagos. 


Dedicatória

     A todos os que participaram, directa e indirectamente, na concepção e produção de cada um dos livros da Argonauta. Não levem a mal as nossas exigências. Sabemos que fizeram o vosso melhor, numa época complicada e para um mercado ingrato e pouco desenvolvido. Oxalá ainda continuassem entre nós. 



Bibliografia

FONSECA, Eurico (1999), «Ficção Científica, Semente do Futuro», Pohl, Frederic, Ó Pioneiro (O, Pioneer), n.º 500 da colecção Argonauta, Livros do Brasil: Lisboa.

SILVA, Luís Filipe (2007), « O Estranho Caso da Prospectória Amnésica», Silva, Luis Filipe; Candeias, Jorge (orgs.), Por Universos Nunca Dantes Navegados, Edição de Autor:Lisboa.


Endnotes

[1] Vale a pena desvendar a rocambolesca história tal como contada por João Vagos em http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/09/n-130-estacao-de-transito.html.
[2]  J. Vagos conclui a recolha dos títulos no número anterior com as seguintes palavras de desânimo: «última edição [...] no formato tradicional. A partir deste número, aumentaram o tamanho dos livros e também o preço, tendo sido publicados apenas mais 10 números, que já não coleccionei. Para mim, a Colecção Argonauta terminou neste número.» (Vagos)
[3] A questão das preferências, aliás, será um dos apanágios menos felizes da colecção, ainda que mais tarde se manifeste sobre outros autores – Simak e Blish, por exemplo.
[4] O primeiro francês foi Jimmy Guieu, logo no n.º 5, uma presença pontual.
[5] Entre outros: Carsac, Russel, Aîné, Wul, Steiner, Hougron, e com obras agora clássicas na FC francesa.
[6] Excertos retirados da apresentação deste volume no n.º 99, presumivelmente da autoria do próprio organizador.
[7] O fenómeno talvez se explique pelo facto de o primeiro volume, Fundação, ter sido editado pela Ulisseia em 1961 na sua colecção 3:C, cuja vida curta (cerca de vinte números) não lhe terá permitido continuar a saga. A ser este o caso, não deixa de ser invulgar a decisão da Argonauta de servir como veículo da conclusão, ao invés da opção mais óbvia (e talvez mais razoável) de aguardar alguns anos até recuperar os direitos de autor e fazer uma edição completa...
[10] Nascimento repetiria o feito, em 1999, com o lançamento de Argonauta 500: edição comemorativa, uma pequena edição que contém depoimentos de apreciadores portugueses e brasileiros.

6 comentários:

  1. Prezado amigo. Encantou-me descobrir seu blog, em homenagem à Coleção Argonauta. Aqui no Rio de Janeiro, nos anos 60 e 70, fui introduzido à Ficção Cientifica pela Editora Livros do Brasil. Chegamos a ter todos os volumes, acompanhando seus lançamentos e, claro, segui entristecido a lenta decadência da coleção, numa época, anos 80 e 90, quando o mercado editorial de Ficção Científica no Brasil (mencionaste corretamente a pioneira GRD) já começava a disputar mercado, com títulos mais bem traduzidos e livros melhor editorados. Mas passávamos indiferentes às expressões lusitanas para nós estranhas (foguetão, ao invés de foguete... ou écran, ou invés de tela) e nos divertíamos muito, na adolescência, utilizando os termos portugueses ao nos referirmos a cenas ou episódios de Star Trek (Kirk olhou o écran, por exemplo, e ríamos). As capas, principalmente as de Lima de Freitas foram notáveis e nunca igualadas na publicação de textos de Ficção Científica em língua portuguesa. Blog emocionante, porque Argonauta ajudou a formar minha visão de mundo e de literatura e sou eternamente grato a esses maravilhosos editores que introduziram valores e ideias novas no mundo lusófono. Meus parabéns, amigo!

    ResponderEliminar
  2. Gostei do blog
    Sendo um aficionado da FC tenho a grande maioria dos Argonautas.
    Dos iniciais só me falta infelizmente o nº6-Mundo Marciano-Ray Bradbury
    Alguém o tem que me queira vender? (luisalreta@clix.pt)
    Já agora tb tenho o 130A (mas desmanchei a parte do livro policial - burro :-(

    ResponderEliminar
  3. Obrigado, não só por este blog como pelos outros associados às colecções de FC em português.
    Tenho a maior parte deles em http://www.familiasalreta.me/Livros_FC/HTML-PT-Pub/indexp.html

    ResponderEliminar
  4. Estou muito agradecida por ter encontrado seu blog. Sou apaixonada por FC e devoradora da coleccao Argonauta desde 1982, quando tomei contato com a mesma. Infelizmente ja nao possuo nenhum dos volumes porque viaei para UK e deixei todo o espolio em Portugal. E' reconfortante ver que existe tanta gente fa dessa collecao/ Parabens e obrigada pelo seu fantastico trabalho.

    ResponderEliminar
  5. Sou um leitor compulsivo, mas nunca de ficção cientifica, e, acompanho o valor do mercado dos livros, que não estes. Sucede que acabei por ficar com a coleção (in)completa do nº1 ao 430. É verdade que o valor é elevado? Não pretendo desfazer da coleção, apenas saber o que tenho.
    Podem informar-me?
    Obrigado

    ResponderEliminar